Sacanagem tributária
O Brasil é uma tragicomédia fiscal de proporções shakespearianas, com pitadas de pastelão tropical. O paquidérmico Estado, homiziado em Brasília ou nas capitais dos estados, vive tropeçando nas próprias leis, na própria gordura e na própria cara de pau. Arrecada mal, gasta mal, e, quando o dinheiro acaba, o ocorre usualmente, sua criatividade se resume a uma ideia fixa: cobrar mais. É o velho vício nacional. E isso ocorre independentemente da postura ideológica de quem comanda o bordel.
Dia desses, o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, foi às redes reclamar de um problema técnico que impedia o pagamento da última parcela do IPVA. O sistema da Secretaria da Fazenda, pobrezinho, entrou em colapso. Mas antes colapsaram os pagadores de impostos. Vou dar um exemplo daqui do Rio Grande do Norte: tenho uma Saveiro cabine simples, anos 2016. Ela custa, segundo a tabela FIPE, R$ 40 mil. Pago R$ 1.200 de IPVA. Ora, o meu problema e de milhares de brasileiros não é o sistema de Caiado, mas a matemática delirante da burocracia: o Estado avalia o carro pelo valor da tabela FIPE, um sonho, e cobra o imposto pelo preço de um pesadelo.
No fundo, a cena é simbólica do país inteiro. Aqui, o governo se comporta como um cobrador de aluguel que insiste em aumentar o valor do imóvel mesmo quando o teto já caiu. Um ex-aluno, que passou um ano nos Estados Unidos, em intercâmbio, contou-me um caso interessante. Era final dos anos 1990, e o seu “pai americano” lhe disse que não achava ruim pagar imposto de renda e explicou com serenidade. A família residia numa cidade do meio oeste do país. Disse-me que ali a segurança pública funcionava, os serviços públicos eram decentes e as alíquotas, razoáveis. Pagava-se, sim, mas havia resultado.
Um sistema tributário justo deve estar baseado em alíquotas e bases de cálculo mínimas, capazes de atingir o maior número de contribuintes com real capacidade de pagamento, retorno concreto dos tributos em serviços de qualidade (segurança, saúde, educação básica), mesmo para quem não os usa diretamente, e penalidade exemplar para quem, podendo pagar, escolhe sonegar. Se o tributo é justo e o retorno é visível, não pagar é prejudica a todos. A cadeia, por lá, era longa o bastante para permitir ao sujeito refletir sobre o próprio egoísmo. Aqui, porém, é o avesso: cobra-se o máximo de quem tem o mínimo, e concede-se o paraíso fiscal a quem menos precisa.
No Brasil, a elite tributária vive em berço esplêndido. As renúncias fiscais são o champanhe da injustiça. Recentemente, vi o vice-presidente Geraldo Alckmin, todo faceiro e serelepe, anunciando novos incentivos a uma multinacional que já lucra bilhões. É o Robin Hood às avessas: rouba-se do pobre o direito à escola para subsidiar o lucro do rico. E os exemplos são inúmeros.

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Como diria o economista José Roberto Afonso, “o sistema tributário brasileiro é uma máquina de desigualdade”. Ele está certo, afinal o Brasil cobra mais de quem consome – e consome mal –, e poupa quem vive de renda, juros e dividendos. É a herança maldita de um país que confunde justiça com favor e progresso com perdão fiscal. Marcos Mendes, outro estudioso do orçamento público, resume o drama em uma frase cirúrgica: “O Brasil gasta muito e gasta mal.” E como gasta! A máquina estatal é um organismo obeso que come com voracidade, mas não produz energia alguma. Mais de 90% do orçamento é obrigatório, destinado a despesas fixas e privilégios perenes. O resto é troco para investimento, pesquisa ou infraestrutura. A Previdência, deformada, ainda garante benefícios milionários a quem sempre esteve no topo da pirâmide, enquanto o professor e o enfermeiro lutam por migalhas. É a fábula da formiga que paga o imposto e da cigarra que se aposenta com bônus vitalício. Samuel Pessoa, da FGV, lembra que o país não mede o resultado de suas políticas. Gastamos bilhões em programas, subsídios e isenções, mas ninguém se pergunta se funcionam.
O Estado brasileiro não quer eficiência; quer ritual. O importante é cumprir o carimbo, o formulário, a cerimônia da ineficiência. Bernard Appy, pai da recente reforma tributária, tenta modernizar o sistema, mas mesmo ele reconhece: é difícil fazer o IVA brasileiro conviver com 27 estados, mais de 5.500 municípios e uma federação que mais parece um condomínio litigioso. A União centraliza o dinheiro, mas quem paga a conta é o prefeito, que precisa manter escola, hospital e segurança com o que sobra das migalhas federais. O resultado é o que José Murilo de Carvalho chamaria de estamento burocrático: uma casta de tecnocratas e políticos que se reproduz e se protege enquanto o povo é chamado a “entender” que “o país precisa de sacrifícios”. O povo entende, sim, mas quem se sacrifica é sempre a mesma fração da sociedade.
O Brasil é um gigante maltrapilho, desengonçado e cheio de potencial, mas governado por estadistas anões. Há algo de grotesco e sublime nesse paradoxo: um país riquíssimo em recursos, talentos e criatividade, e miserável em planejamento, coerência e vergonha na cara. A classe política age como um síndico de prédio que, ao ver o vazamento, convoca reunião para decidir o aumento da taxa de condomínio. O problema não é técnico, é moral. O Estado brasileiro perdeu o senso de reciprocidade: exige sacrifício sem oferecer contrapartida, cobra lealdade sem demonstrar respeito.
Os caminhos estão desenhados há décadas. Primeiro, simplificar e tornar progressiva a tributação: menos imposto sobre o consumo, mais sobre renda e patrimônio. Segundo, avaliar resultados: nenhum gasto público deve existir sem metas, prazos e transparência. Terceiro, destravar o pacto federativo, dando aos municípios recursos compatíveis com as responsabilidades que carregam. E, por fim, romper o corporativismo, essa religião secular dos que vivem de dentro do Estado contra o Estado. Mas tudo isso exige coragem, e coragem é mercadoria escassa em Brasília.
No fundo, o Brasil não é apenas um país pobre; é um país sabotado. Sabotado pela esperteza institucionalizada, pela tolerância com a mediocridade e pelo romantismo com o desperdício. O brasileiro médio, que paga imposto no supermercado e no tanque de gasolina, é o verdadeiro herói anônimo dessa epopeia fiscal. Maquiavel dizia que “nada é mais difícil de conduzir do que iniciar uma nova ordem”. E ele tinha razão. Aqui, a velha ordem é uma senhora teimosa que insiste em morar de graça no porão do futuro. Enquanto isso, seguimos assistindo à comédia tributária nacional: o governo arrecada mal, gasta mal e ainda tem a desfaçatez de se achar virtuoso. O contribuinte é o vilão, o sonegador é o demônio, e o Estado é o santo, ainda que use o halo para esconder o déficit.
O Brasil não precisa de mais impostos; precisa de vergonha, racionalidade e senso de justiça. No dia em que o brasileiro olhar para o boleto e disser “vale a pena”, teremos deixado de ser um povo tributado e passado a ser uma nação civilizada. Até lá, seremos apenas um país que cobra caro pela própria decadência. Um espetáculo de horror fiscal