O Brasil que espanca o professor

por Sérgio Trindade foi publicado em 21.out.25

No último Dia do Professor escrevi um texto sobre a “valorização dos docentes”. O texto d’agora confirma o pântano no qual nos enfiamos.

A sala de aula no Brasil é um misto de hospício e purgatório. Quando passa do ponto, inferno, conforme demonstrou o episódio ocorrido no Distrito Federal, onde um pai entrou em sala de aula e espancou um professor de cinquenta e três anos. O motivo? O mestre ousou repreender a filha do homem, adolescente de franja, celular e insolência, por estar mexendo no telefone celular durante a aula.

Imagem feita com auxílio de IA

As imagens correram as redes.

O homem, um Hércules de condomínio, investe contra o professor como se defendesse a honra familiar – ou o pacote de dados da filhota, tão mal-educada quanto ele. Os alunos tentaram apartar a cena. O Estado, omisso quando tem tarefa a cumprir, calou-se. E o Brasil, este país da pedagogia de porrada, assiste tudo com o mesmo prazer mórbido com que assiste a um linchamento.

O caso do Distrito Federal não é um ponto fora da curva. É o daguerriótipo da curva inteira. A cada semana, um professor é insultado, ameaçado, empurrado, agredido – e, agora, espancado – quando exercia o próprio ofício. E não falo de um ou outro desajustado ocasional, mas de uma epidemia social, de uma pedagogia às avessas, na qual o aluno é o cliente, o pai é o juiz (deus dos deuses) e o professor é o réu. O agressor já não é exceção; é personagem de um Brasil que perdeu a vergonha e o respeito.

Sou professor de uma instituição federal e o que vi – ou vivi – em sala de aula me diz que a porcariada não começa no soco, mas na omissão. O agressor não nasce no portão da escola; é parido pela indiferença de gestores que têm medo de desagradar, pela covardia institucional que prefere o “vamos conversar” ao “vamos punir”. Há escolas em que o aluno descumpre impunemente as normas, faz cara feia quando é admoestado, ameaça e nada é feito. No máximo, o professor reclama e o diretor aconselha: “Evite confusão”. O gestor, que devia proteger o mestre, transforma-se num diplomata da mediocridade. Alguns, interessados no voto do aluno na eleição seguinte, segue passando a mão na cabeça de todos. E, aí, meus três ou quatro leitores, a omissão se torna o preâmbulo da pancada.

O celular, esse pequeno totem moderno, virou o símbolo da decadência. Há lei federal que proíbe o uso em sala, mas a norma virou enfeite de papel timbrado. O professor que tenta aplicar a regra é visto como tirano, como um inimigo da liberdade digital. E o pai – este pai do Distrito Federal, de camisa polo e testosterona atrasada – acha-se no direito de entrar na escola para defender o “direito” da filha de não aprender nada. Taí o Brasil: um país em que se confunde liberdade com insolência, autoridade com autoritarismo, e educação com passatempo.

“Toda unanimidade é burra”, dizem que um dia disse Nelson Rodrigues. Pois bem: a unanimidade agora é que o professor deve ser “resiliente”. Eis a palavra mágica, esse placebo corporativo que tenta transformar humilhação em virtude. Apanha, mas sorri. É ofendido, mas compreende. O docente brasileiro virou uma espécie de mártir laico, obrigado a ser paciente com o aluno, tolerante com o gestor e grato pelo salário que mal lhe garante pagas as contas. Quando apanha, ainda pedem que “entenda o contexto”. Resiliente o cacete. Professor é humano e, portanto, deve reagir a gestores de planilhas e teóricos de fancaria. É por aí que deve começar a resistência.

O contexto, aliás, é este: um país que há décadas trata o magistério como subemprego, que paga mal, desmoraliza e ainda culpa o professor por tudo, da nota baixa à violência urbana, e acha que resolve o problema dando aos professores uma carteirinha que lhe vai garantir “direitos”. O professor virou o bode expiatório nacional: se o aluno não aprende, é culpa dele; se o aluno agride, é culpa dele; se o aluno abandona a escola, também. O Brasil, esse mesmo Brasil que se orgulha de ter universidade gratuita e professor doutor, trata seus mestres como serviçais do ressentimento alheio.

O episódio do Guará é um microcosmo de tudo o que o país se tornou: uma república de pais malcriados e gestores covardes, onde o respeito é artigo de museu. Depois da surrdo pai incivilizado, nenhum governador, nenhum ministro, nenhum secretário da Educação apareceu para dizer o óbvio: que o professor merece proteção e que o agressor deve ser exemplarmente punido. Porque, no fundo, todos temem o eleitor – esse mesmo eleitor que acha natural bater num mestre em nome do “direito da filha”.

Eis a pedagogia da impuno-mediocridade: a cada agressão, uma nota de repúdio; a cada humilhação, uma live sobre “respeito na escola”. O país que um dia quis ser Pátria Educadora hoje é o manicômio pedagógico onde o professor se torna réu por tentar educar. Quando o agressor sai da delegacia e dá entrevista se dizendo “arrependido”, o espetáculo já está completo: o agressor vira vítima e o professor vira polêmica. E no meio dessa farsa, o professor ainda volta à sala. Volta, humilhado, ferido, mas volta. Entra de novo, ajeita os óculos, e encara os mesmos rostos indiferentes. É o último herói do país, condenado a ensinar num mundo que o rejeita e despreza. A tragédia brasileira é que o herói já não sabe que é herói. E o público, anestesiado, aplaude o vilão.

Depois de martirizar o professor, chega o Estado com uma tal carteirinha… Ora, o professor que abana o rabo por uma carteirinha deve seguir apanhando dos governos, dos pais e dos alunos. Enquanto isso, a menina do celular continua digitando, talvez até sobre o caso, entre um emoji e outro. E o pai, alçado ao posto de celebridade, deve estar convencido de que “defendeu sua cria”. Talvez poste: “Educação se faz em casa”. Ironia suprema: quem agride o professor se acha educador. O Brasil, de tanto confundir direito com desrespeito, acabou confundindo civilização com barbárie.

Eis o país onde o professor apanha, e ainda pedem que ele sorria. Parafraseando Kant: O Brasil é exatamente aquilo que a (falta de) educação faz dele. Ainda surgirá o teórico torto, com barba de profeta, olhar esgazeado e clichês sem-fim para apontar o culpado: o professor – que, dolente, abana o rabo e grita: Tragam logo a carteirinha.

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