Professor e prostituta

por Sérgio Trindade foi publicado em 25.abr.25

Era o começo do século, mas poderia ser o fim dele ou o fim do mundo. Eu, pobre-diabo com pretensões acadêmicas, acabara de me enfiar no mestrado em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Uma tragédia com diploma. Dava sessenta aulas por semana – sim, sessenta! – em escolas e faculdades privadas de Natal. Sessenta. Nem Jesus Cristo pregou tanto. Desdobrava-me em mil, um polvo histriônico e histérico para dar conta das aulas e dos textos a serem. Não dormia, não pensava, só sobrevivia. E sorria. Sempre sorria, afinal o brasileiro tem vocação para mártir, com aplausos e fanfarras.

Meu orientador era Orlando Pinto de Miranda – paulista, uspiano, um Voltaire de barba longa e branca, culto e de um sarcasmo imperial. Ele zombava da gente com o requinte de um maestro regendo um coro de aluados. Era ácido, cortante, e fazia da sala de aula uma arena. Não ensinava – esgrimia e duelava. E todos nós, seus alunos e seus orientandos, levávamos estocadas no ego com prazer masoquista. Orlando nos humilhava, mas com estilo. Era um aristocrata do crueza e do escárnio.

As aulas dele eram um espetáculo. Um culto ao pensamento e ao conhecimento. Quando abria o debate, então, a coisa tornava-se uma ópera. Nós, aprendizes de feiticeiro, dávamos nossos pitacos como quem joga bolinhas de sabão no fogo. E ele – oh, ele! –  deleitava-se com cada tentativa nossa de parecer inteligentes. Era generoso com sua ironia: batia em todos por igual. E nas festas, nos bares, nos convescotes – ah, ele mantinha o figurino! Era um profeta de boteco, um Sócrates boêmio e impiedoso.

Eu gostava. Sempre gostei. Nunca me incomodei em ser zombado, desde que me deixassem zombar de volta. Era o jogo. Era o pacto. E, cá entre nós, havia beleza naquilo tudo. A universidade era uma peça, e nós, maus atores, canastrões posando de Laurence Olivier, sob a direção de um mago certeira e zombeteira de Orlando.

Certa vez, numa dessas discussões em torno do “papel do professor na sociedade” –  esse tipo de pergunta que já vem com caspa e mofo – depois de muito blá-blá-blá pedagógico, muita filosofice e muita sociologice, Orlando, com aquele seu olhar de esfinge debochada, largou no ar:

–  Vocês sabem qual a diferença entre o professor e a prostituta?

Silêncio. Alvoroço. Clímax. Alguns engoliram a língua. Outros engasgaram com pipoca Bokus, antecipando o lanche de governador. E veio a chuva de teses e citações. Os acadêmicos se contorcendo entre a lógica e a moral, entre a Platonice, o marxismo de botequim e de sovaco e a Foucaulotlândia e o mundo real.

Quem conhecia Orlando sabia: aquilo era um jogo, uma troça. Ele só queria ver o circo pegar fogo. E depois, claro, dançar em volta das cinzas.

O próprio fingiu entrar na pilha, fingiu que levava a sério. Era método. Pilhava para depois pilheriar e tripudiar. Os ingênuos caíam feito patos. Os escolados prepararam-se para o golpe final. E ele, impassível, como quem vai anunciar uma sentença milenar e definitiva, disse:

– Professores e prostitutas vendem partes do corpo diferentes.

Foi como uma explosão. Gargalhadas, palmas, escândalo, ofensa. Uns riram como pecadores perdoados. Outros, os virtuosos de sempre, ficaram magoadinhos, com aquela dorzinha moral no fígado. Mas todos, todos, entenderam a verdade ululante. A comparação, ainda que parecesse indecente, trazia verdade, era quase que absolutamente exata.

Duas décadas depois, envelhecido e muito mais cínico do que era, dou razão ao velho Orlando. Ele não queria ofender. Queria iluminar. À sua maneira, brutal e lúcida. Meus anos de Escola e de sala de aula confirmam a sentença de Orlando Pinto de Miranda.

Sempre que escrevo ou quando me debato nas entranhas da docência e do serviço público, lembro daquela frase com a reverência que só os convertidos sentem: “Sim, Orlando. Vendemos partes do corpo diferentes. O cansaço, porém, é o mesmo. E as mulheres da difícil vida fácil parecem mais nobres”.

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