A Copa que ia salvar Natal (Ou como prometeram um paraíso e nos entregaram uma Arena superfaturada)

por Sérgio Trindade foi publicado em 29.jul.25

Em 30 de outubro de 2007, uma terça-feira ordinária, dessas em que o brasileiro acorda com ressaca moral e esperança de salvação via futebol, a FIFA, com a solenidade de seita iluminada, anunciou: o Brasil seria sede da Copa de 2014. Não houve sustos, tampouco estranheza. Não houve concorrência. No palco, apenas a megalomania de nossos procuradores. Era o império do improviso vencendo por W.O.

Luiz Inácio Lula da Silva, então Presidente da República e mestre de cerimônias do delírio nacional, garantiu que os investimentos viriam da iniciativa privada. Riam. Riam muito. Até hoje ecoa o som dos bancos públicos arrombando cofres para sustentar delírios sem-fim. O BNDES virou mecenas de arenas futuristas, enquanto a saúde pública agonizava nos corredores dos hospitais públicos, entre macas e esparadrapos vencidos, a exemplo do nosso valoroso Walfredo Gurgel.

Prometeram que não haveria elefantes brancos. Eram homens de palavra. De palavra bíblica, daquelas que exigem fé cega. Os estádios, doravante chamados de arenas, surgiram como templos de um novo culto: o da engenharia cara e da honestidade facultativa. Brasília construiu um estádio, digo, arena de R$ 1,5 bilhão para vinte gatos pingados e um cachorro vadio verem clássicos como Brasiliense X Luziânia.

A Lava Jato, tardia e teatral, descobriria o óbvio: que houve conluio, propina, licitações de cartas marcadas. O Brasil, coitado, virou protagonista de pastelão bilionário, no qual cada arena era um monumento ao desperdício e cada viaduto prometido uma ficção urbanística. E foi nesse cenário de pilhagem e delírio que Natal, a ensolarada donzela potiguar, entrou em cena.

A escolha de Natal como sede foi um misto de crendice e tráfico de influência. Com sua estrutura modesta e baixa malha aeroviária, a cidade foi agraciada – ou amaldiçoada – com a responsabilidade de sediar jogos de uma Copa do Mundo.

Prefeitura Municipal, Governo do Estado e Confederação Brasileira de Futebol formaram a tríade milagrosa que vendeu a ideia de que a cidade viraria uma Dubai latino-americana. Não virou. Mas construiu-se a Arena das Dunas, um estádio lindo como um palácio mourisco, mas vazio como um túmulo. Cochicham que parece uma Cebola (Arena Cebolão). Custou mais de R$ 400 milhões. Deveria ter vindo com uma placa: “Use com moderação (ou nunca)”.

Imagem feito com auxílio de IA

Prometeram o paraíso e nos entregaram uma maquete de PowerPoint. Lagoa Nova, outrora um bairro de classe média com alma de interior, seria revolucionada – palavra mágica dos que pretendem nada fazer. Viadutos surgiriam como espinhas em adolescente. Corredores de ônibus cortariam a cidade como bisturi. Natal não andaria, deslizaria. E o povo, extasiado, acreditou. Porque o brasileiro, coitado, acredita. É crente juramentado, diria o sábio Odorico Paraguaçu, célebre prefeito da gloriosa Sucupira.

O projeto era tão megalomaníaco quanto imbecil. Previa a demolição do Machadão e do Machadinho, recentemente reformados, como se o contribuinte fosse um idiota de estimação. Cogitou-se até derrubar o Centro Administrativo, recém-pintado a rolo. A ideia era recomeçar a cidade do zero. Como se fôssemos uma Brasília embriagada espremida entre o rio e o mar.

Não houve estudo de impacto. Não houve consulta popular. Houve, sim, um estupro coletivo da lógica, da urbanidade e da dignidade do Erário. Era como se um gênio tivesse soprado no ouvido das autoridades: “Destruam tudo e digam que é por amor à FIFA”.

E então ela chegou: a Copa. A cidade se enfeitou como uma noiva iludida em dia de casamento comunitário. Em Natal aconteceram poucos jogos. O único digno de nota foi o das oitavas-de-final entre Itália e Uruguai, famoso não pelo futebol, mas pelo momento em que o centroavante uruguaio Luis Suárez mordeu o peito do zagueiro italiano Chiellini, como se quisesse mastigar o símbolo da moral europeia.

Os outros jogos? Dignos de nota de rodapé. Como seria um Trinidad e Tobago contra um Azerbaijão da América Central. Pouco importa. Poderia ser Alemanha x Itália, ou ABC x Alecrim, e ainda assim seriam só partidas de futebol. Nenhuma delas salvaria a cidade. O esporte transforma quando é política pública – e não quando é pretexto para levantar arquibancada com cimento banhado a ouro e cravejado de brilhantes.

Diziam: “Natal avançará trinta anos em três”, numa reinvenção kubitschekiana. Mas a única coisa que avançou foram os preços das licitações. Falavam em mobilidade, segurança, saúde. Ora, se esses setores já exigiam investimentos urgentes, por que esperar a visita da FIFA para agir? A população natalense precisava da Copa ou precisava de governantes que não confundissem cidade com tabuleiro de War?

Na prática, a cidade andou de ré. A Prudente de Morais, que devia ser alívio, virou suplício. A Bernardo Vieira, entregue a um jerico urbanístico. E o trânsito, ah, o trânsito: continuou a mesma orgia de buzinas e barbeiragens, só que agora com um estádio (desculpem-me, arena) vazio – só lotado para shows de música e afins.

Mal a cidade foi anunciada como sede, e já brotava das trevas um livro, desses que parecem psicografados por algum ghostwriter de esquina. Um “ilustre filho da terra”, cuja relação com a escrita era, digamos, desafiante, teve sua biografia publicada exaltando seu empenho para trazer a Copa a Natal. Fotos em curral eleitoral, outdoors com cara de campanha mal disfarçada, e muito, muito papel couché.

Era o Brasil em sua forma mais caricata: o marketing triunfando sobre a vergonha. E tudo isso financiado, é claro, pela boa e velha viúva – o Estado.

Disseram que a Copa traria melhorias. Mas no Hospital Walfredo Gurgel, o maior do estado, os corredores continuaram a servir como enfermaria. Macas, soro no prego, e um calor capaz de assar pastel de vento. Nos postos, faltavam seringas. Faltava esparadrapo. Só não faltava paciência ao povo, esse anjo barroco que apanha e agradece.

Falaram em segurança. Mas basta sair à rua para topar com o contrário. Falaram em legado. O que ficou, no entanto, foi uma estrutura caríssima, uma população desiludida, e o riso cínico de quem ganhou com a festa e agora toma vinho chileno enquanto o povo pega ônibus com ar-condicionado quebrado.

Vieram dois viadutos. Só dois. Como se dois rins novos fossem suficientes para curar um câncer no pâncreas. Foram erguidos como troféus de uma gestão visionária e, no entanto, não resolveram o caos viário. A promessa era um sistema de transporte digno da Noruega; o que recebemos foi um cruzamento sem semáforo com nome de obra estruturante.

A Arena das Dunas, por sua vez, virou espaço de shows esporádicos e casamentos ostentação. O futebol local, órfão de público, jamais justificaria aquele colosso. Os grandes jogos sumiram. Ficou o estádio (digo, a arena). Ficaram as dívidas. E ficou a pergunta incômoda: por que insistimos em nos comportar como novos ricos de feira livre?

Tudo correu por conta do raciocínio de um Nabucodonosor pós-moderno. Derrubaríamos tudo, gastaríamos milhões e depois faríamos tudo de novo, só que com tapume importado e cimento suíço. Tudo em nome da Copa. Tudo pelo legado. Tudo por aquele instante fugaz em que um europeu queimaria a pele no sol de Ponta Negra para ver a Holanda surrar o Irã.

Vieram 2010, 2012, 2014 — e não fizemos nada. Apenas assistimos, entre entorpecidos e resignados, à cidade ser moldada como maquete de delírio. No fim, o que sobrou foram placas amareladas, promessas vencidas e reportagens de arquivo com as mesmas manchetes de sempre: “Obras paradas”, “Inquérito investiga superfaturamento”, etc.

Natal não avançou trinta anos. Recuou dez. E o que é pior: com um sorriso cínico no rosto e uma camiseta da Seleção ainda cheirando a naftalina.

A Copa passou como um cometa de ouro falso, deixando para trás crateras cívicas e um aeroporto nos confins do mundo. O discurso da redenção virou piada em mesa de bar. Os que acreditaram se calaram. Os que alertaram, riram por dentro. Não por arrogância, mas por autodefesa.

Natal não foi salva. Foi seduzida, iludida, usada e abandonada. Como aquelas personagens trágicas que amam demais e acordam sozinhas no dia seguinte.

E o estádio (arena, arena, arena…)? Está lá. Belo, imponente, vazio. Um mausoléu de esperança que teima em nos engolir.

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