Gol de Hélio Câmara

por Sérgio Trindade foi publicado em 09.maio.22

O texto abaixo é de Rubens Lemos Filho (Rubinho), craque do jornalismo brasileiro.

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Recebi, semanas atrás, pelo Wathsapp, uma mensagem paralisante do amigo Júlio César, segurança do ABC e torcedor fanático do clube. Era o áudio de um gol narrado por Hélio Câmara, o maior comunicador esportivo da história do Rio Grande do Norte.

Chorei ao fim daqueles parcos dois minutos. O gol, de pênalti, deu a vitória ao ABC sobre o América por 1×0 na distante tarde de 20 de abril de 1997, domingo ensolarado de brilho que apenas os clássicos irradiam. A cobrança foi do volante Ivanildo, marcador eficiente e especialista em penalidades máximas.

Hélio Câmara arquiteta a atmosfera de um teatro grego, dramaticidade jamais imitada em lugar nenhum do mundo. Super Hélio nunca foi mero transmissor de lances banais ou apocalípticos. Super Hélio foi um administrador de emoções, um controlador de sentimentos de massa.

É pênalti a 20 de abril de 1997 e o relógio marca 16h45 no Estádio João Cláudio de Vasconcelos Machado – assim pronunciava, por inteiro, o homem de rádio de intensidade inatingível.

É pênalti, Ivanildo corre lentamente, ginga, desloca o goleiro Wanderley e coloca a bola na rede com maciez de artista plástico. O lado da Frasqueira, onde eu estava com o meu primo-irmão médico e mestre Luiz Alberto Carneiro Marinho e o irmão afetivo, professor Sérgio Trindade, balançou.

Retrocedendo a mensagem alguns segundos, percebe-se a sintonia fina de Super Hélio comigo, decifrando meu estado de espírito sufocado de tensão e me homenageando, ouvinte que sempre fui dele desde antes dos 10 anos de idade: “Alô Rubens Lemos Filho, olha a emoção garopinho(ele pronunciava o p na vaga do t) pode ser agora”. O agora foi o gol de Ivanildo que me fez, aos 26 anos, imerso em hectolitros de cerveja.

Ao ouvir de novo a voz de Super Hélio, tantos anos depois, deixei o pranto se fazer encanto. Estava homenageando, ferido de dores recentes como a perda de uma mãe, aquele homem de português claro e de humor certeiro no improviso e na cultura vasta sobre qualquer tema.

Gol de Ivanildo! Reconstituí o lance na lembrança e me reencontrei sufocado pelos abraços de Luiz Alberto e Sérgio, Luiz Alberto que Super Hélio chamava de “o maior infectologista do meu Brasil, Brasileiro, meu mulato inzoneiro”, escalando aquarelas passionais por entre as alegrias eternizadas pelo seu grito único, ecoando pelas arcadas do Machadão depois assassinado.

Um dia antes dessa partida, eu e Sérgio levamos o Super Hélio e sua amada esposa, Dona Lélia, para uma tarde inesquecível na casa de Luiz Alberto na Praia de Graçandu, litoral Norte próximo à capital. Super Hélio monopolizou as conversas, contou episódios que ninguém faria com tamanho didatismo bem humorado. Rimos como se pudéssemos continuar até hoje.

No domingo, Super Hélio resolveu retribuir sacudindo nossas coronárias em teste feroz de resistência porque o América, à época, era um time de Série A. O ABC estava na B e ganharia o campeonato de 1997 do pé à ponta.

Parei de ouvir o áudio do gol de Ivanildo porque estava entrando em maluquice masoquista. Até que os mistérios da vida me puseram diante de Super Hélio, dias após a gravação. Em demorada visita, encontrei seu túmulo no Cemitério do Alecrim. Um arrepio magnético me fez estancar.

Chamei-o duas vezes. Três. Quatro. Cinco. Sempre em silêncio diante da frieza da pedra. As lágrimas desgarradas na impotência do goleiro Wanderley naquele 20 de abril de 1997. Pedi a Deus e a todos os santos, gostassem ou não de futebol, para fazer Super Hélio surgir e me dar um abraço.

Pensei no gol de Ivanildo. No grito, na citação do meu nome. Super Hélio comigo, reencontro sem o verbo que nele fluía ilimitado. Me entreguei ao de sempre: à saudade. Que me é companheira, sucessiva, em ausências recorrentes.

Pensei em Super Hélio. Já havia evocado Ivanildo, morto de abcesso cerebral 21 anos atrás aos 24 de nascimento. Me arrastei à saída lateral do cemitério. Repetindo para ninguém escutar: a solidão, para quem fica, é a asfixia do espírito.

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