O último conselho de Dinamite
Há clubes que nascem condenados à eternidade. O Vasco da Gama é um desses, um navio antigo que insiste em navegar, mesmo com o casco furado, as velas rasgadas e os marinheiros debatendo-se entre a fé e a ruína. Há duas décadas e meia o Vasco vive o mesmo naufrágio, repetindo a queda com a dignidade dos santos e a teimosia dos bêbados. E, no meio desse mar de dívidas e derrotas, surge Rayan, um menino de chuteira nova e alma antiga.
Rayan é cria de São Januário. Não nasceu, foi gestado no gramado, entre os gritos de “Gol!” e o cheiro de amendoim torrado. Seu pai foi jogador do clube; a mãe, funcionária da bilheteria. O amor deles começou numa sexta-feira de jogo chuvoso, com o Vasco perdendo, como sempre, mas com a esperança intacta, como sempre também. Deu-se ali o milagre: o clube perdia, o casal vencia. E nasceu Rayan, filho legítimo da fé cruzmaltina.
Dizem que Roberto Dinamite veio ao garoto como uma aparição. Não dessas visões bobas de noviça, mas uma epifania de chuteira e camisa suada. O maior ídolo da história vascaína, o homem que fez da bola uma arma e do gol uma religião, desceu do seu trono de lembranças para dizer ao garoto: “Vai aparecer um bando de gente, mas tenha como referência o seu pai e a sua mãe, que estão com você. Eles que gostam realmente de você. Se você for bem, o Vasco vai te chamar e fazer o melhor contrato. Se você for mal, vai fazer contrato nenhum. Pé no chão… até perguntei, tem 11 anos mesmo? Depende só de você. Tem uma trajetória longa aí. Abraço e sucesso para você. Quero estar vivo quando você fizer gols pelo Vasco.” (https://www.youtube.com/shorts/oGx_94Rw3js; https://ge.globo.com/futebol/times/vasco/noticia/2025/10/06/video-antigo-de-roberto-dinamite-com-rayan-viraliza-quero-estar-vivo-vendo-voce-fazendo-gols-pelo-vasco.ghtml).
Há uma verdade simples e brutal, e Roberto sabia disso: “O Vasco é mais do que um clube. É uma penitência”.
Rayan ouviu calado, como quem recebe um segredo do além. Roberto, o Dinamite, o homem que explodiu no Maracanã e fez o Brasil inteiro tremer, sabia que o Vasco já não era o mesmo. Os tempos agora eram outros, os craques viraram planilhas, os ídolos, logotipos. E no lugar dos deuses vieram os investidores. Mas ele acreditava que o fogo sagrado ainda podia reacender, e que esse fogo estava nos pés daquele menino.

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O velho craque sorria com a melancolia dos heróis que já viram tudo: os gols, as glórias, os rebaixamentos e as assembleias patéticas. E Rayan o olhava como se olham os profetas – com medo e devoção. Sabia que aquele homem não falava apenas de futebol, mas de destino. Porque, no fundo, cada jogador que veste a cruz de malta não joga contra o adversário — joga pela história e contra a tragédia.
O menino entendeu e entende o peso do uniforme, o fardo da história, o eco dos 700 gols. E talvez tenha entendido, aos 17 anos, que vestir a camisa do Vasco é carregar um mundo nas costas – um mundo que não desiste, mas tropeça em si mesmo.
Roberto Dinamite partiu, mas deixou o seu conselho girando no ar, como bola suspensa na área, esperando o chute final. O Vasco continua em crise – e talvez continue por muito tempo, pois há clubes que precisam sofrer para existir. E o Vasco é um deles. Mas há também garotos como Rayan, que nascem para lembrar ao mundo que o sofrimento pode ser bonito, desde que venha com um drible.
E assim o menino entra em campo. A torcida olha e suspira, como quem reza. A cada toque de bola, o passado e o futuro se misturam, e por um instante – breve, luminoso, quase milagroso – São Januário volta a ser o templo onde os deuses do futebol ainda respiram.
Rayan corre, chuta, e o estádio inteiro grita, não apenas pelo gol, mas pela ressurreição de um clube que se recusa a morrer. E em algum lugar do além, talvez na arquibancada celestial, Roberto Dinamite sorri, com aquele olhar de quem sabe que o Vasco da Gama ainda vive, porque um garoto ousou acreditar.