O mentiroso, o mal-intencionado, o desinformado e o militante andam de mãos dadas

por Sérgio Trindade foi publicado em 19.maio.19

Sou aficcionado pelas redes sociais. Vez por outra brigo com elas, angustio-me por causa delas, prometo abandoná-las. Mas volto a usá-las.

Venho acompanhando, nos últimos dois anos, movimento de internautas criando narrativas sobre suas trajetórias pessoais. Muitas são engenhosas e românticas. Algumas, mentirosas.

Os engenhos, romances e mentiras passam por vidas sofridas, com recursos familiares minguados, esforços demasiados, com oito a dez horas de estudos diariamente, combinados com seis a oito horas de trabalho diários.

Na esteira do corte/contingenciamento feito pelo governo Bolsonaro e que atingiu a área educacional, pipocaram relatos de vidas sofridas, noites mal dormidas, esforços ingentes e por aí vai.

Há gente nascida no seio de famílias de classe média e classe média alta discorrendo sobre as mazelas de anos de estudo em escolas públicas, quando todos sabemos que o jovem de ontem e o adulto de hoje estudou por anos em escola privada e fez ensino médio na ETFRN/CEFET/IFRN para, logo depois, ingressar na UFRN.

A narrativa busca construir a imagem de um batalhador que veio de baixo e chegou a postos cobiçados no serviço público e na iniciativa privada. Ela é, porém, mentirosa. Com muito boa vontade, romanceada. E difunde-se no momento em que propala-se a defesa da educação pública de qualidade.

O adulto de hoje apresenta-se zeloso com a coisa pública, um republicano de escol. Por certo, dormia em berço esplêndido, como está no hino nacional. Ou como canta um do hinos da luta pela redemocratização do Brasil, de Chico Buarque: “Dormia, a nossa pátria-mãe tão distraída / Sem perceber que era subtraída / Em tenebrosas transações”.

As “tenebrosas transações” dos anos de autoritarismo do regime de 1964 subsistem na democracia capenga da Nova República e a sociedade brasileira deu de ombros para o que ocorreu no palco e nos bastidores do poder, para ficar na imagem da política como teatro construída por Balandier, porque o adulto zeloso só existe na sua própria narrativa.

Ele não é zeloso da coisa pública, é zeloso do seu próprio interesse. Não pensa em política como a busca pelo bem comum. Quando muito, é corporativista. Pensa política como a defesa do interesse de grupo do qual faz parte.

A inércia nada resolve. E nos leva ai limbo ou ao inferno.

Anos de inércia e o limbo/pântano chegou. Chegou fraturando a sociedade em dois polos que não aceitam e não permitem a existência um do outro.

Anos de inércia nos levaram a apenas testemunhar a corrupção deslavada, a demagogia infrene, a safadeza descarada e a impunidade cínica. Os sinais de esgotamento da nossa inércia surgiram e não demos bola e ela, a nossa inércia, aliada à audácia dos canalhas nos conduziram ao atual estado de coisas.

Deveríamos nos lembrar da reportagem de Ricardo Kotscho sobre as mordomias dos funcionários públicos graduados que viviam em Brasília. Foi publicada em meados dos anos 1970.

Deveríamos nos lembrar dos escândalos de corrupção do final dos anos 1970-início dos anos 1980: Capemi, Coroa-Brastel, Delfin, Escândalo da Emergência.

Deveríamos nos lembrar da CPI da Corrupção do governo Sarney e da compra de votos que garantiu os cinco anos na Presidência para o donatário do Maranhão.

Deveríamos nos lembrar do Escândalos dos Anões do Orçamento e da compra da reeleição de Fernando Henrique Cardoso.

Deveríamos nos lembrar das viagens do então governador Sérgio Cabral Filho (é sempre bom pôr o filho ao final do nome do canalha para que não o confundamos com o pai dele, Sérgio Cabral, este, sim, um grande homem).

Deveríamos nos lembrar dos aeroportos de Aécio Neves e dos jantares faustosos de Eduardo Cunha.

Deveríamos nos lembrar da paixão desmedida de Lula por jatinhos e a de Dilma por mega-comitivas e hotéis de luxo.

Não deveríamos nos esquecer dos estádios da Copa e do legado que ela e a Olimpíada iria nos deixar.

Tudo isso passou sob as nossas barbas e carregou a sociedade brasileira pro limbo, diriam alguns; eu, pessimista como sou, digo que a sociedade brasileira está às portas do inferno, solenemente dividida, com grande parte dos seus odiando-se uns aos outros e com uma parcela instruída ou pretensamente instruída entrincheirada e defendendo os seus interesses a despeito do interesse público.

Não pode dar boa coisa.

 

 

Por Sérgio Trindade

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