A surrada democracia brasileira
Domingo (25/02), Jair Bolsonaro comandará manifestação na avenida Paulista. Alega o ex-presidente que está sendo perseguido pelo “sistema” desde que o presidente Lula assumiu à presidência da república. O “sistema”, por sua vez, cerca Bolsonaro, acusado de tramar um golpe de Estado.
A história republicana brasileira é pródiga em golpes de Estado; a prática democrática é escassa.
Os democratas brasileiros são brasileiros, mas nunca foram essencialmente democratas, como é possível verificar como praticam a democracia cultuando projetos, propostas e regimes autoritários.
Sempre que abordo o tema ditadura militar brasileira, toco num evento polêmico e pouco conhecido, a saber, como o golpe de 1964 foi desfechado com o auxílio de democratas para combater autoritários que se diziam democratas. Às vésperas do golpe a democracia morrera de morte matada a golpes de tacape desfechados pelos dois lados da contenda, tanto que a confecção do Ato Institucional que passou para a história como AI-1 teve o concurso de políticos que fizeram carreira em defesa da democracia que ajudaram a construir e a destruir.
O AI-1 era só AI porque acreditava-se que só ele seria necessário para fazer a limpa e pôr o Brasil nos trilhos. Teve muitos pais e uma única mãe, a junta militar liderada pelo general Costa e Silva, que se apossou do poder logo após a derrubada do presidente Jango.
Os muitos pais: Júlio de Mesquita Filho (dono d’O Estado de São Paulo), o almirante Sílvio Heck, o marechal apijamado Odílio Denis, o professor da USP Gama e Silva (posteriormente ministro da justiça de Costa e Silva), o presidente da câmara de deputados Ranieri Mazzilli em consórcio com vários parlamentares da UDN e do PSD, entre os quais o deputado federal Ulysses Guimarães. Cada um deles tinha uma ideia de lei e uma delas, a proposta por Ulysses Guimarães e Martins Rodrigues, sugeria cassação por quinze anos, e não dez como ficou no ato editado. Sobre ela diz o jornalista Antônio Carlos Scartezini no livro Dr. Ulysses, uma biografia: “Quase uma semana depois da vitória militar, a 7 de abril, Mazzilli pede a algumas das principais lideranças do Congresso a favor do golpe que fossem ao Rio para um encontro com ele, que lá estava com a Junta. Num avião militar eles deixam Brasília no dia seguinte. Eram oito deputados e senadores, a maioria da UDN: Pedro Aleixo, Bilac Pinto, Adauto Lúcio Cardoso, Paulo Sarazate, João Agripino e Daniel Krieger. Os outros dois eram do PSD: Martins Rodrigues e Ulysses Guimarães. Ao receber o grupo, Mazzilli encomendou a redação de um texto que servisse de base ao Ato Institucional a ser baixado pela Junta (…). Era trabalho para uma tarde inteira. À noite o grupo retorna a Mazzilli com a sua proposta. Mas não era texto que representasse consenso dos oito congressistas. (…) Ulysses sugeriu que as suspensões de direitos políticos fossem por quinze anos, uma forma de afastar com eficácia da vida pública os punidos. A maioria do grupo acha que quinze anos é demais e propõe a punição por dez anos. (…) Mais tarde, os parlamentares jantavam com Mazzilli quando Gama e Silva retorna e transmite a resposta do general Costa e Silva: dispensava-se a contribuição dos políticos porque os juristas Francisco Campos e Carlos Medeiros e Silva já estavam encarregados pela Junta de redigir o Ato Institucional.”
A proposta dos dois juristas era diferente da elaborada pelos oito parlamentares e, também, da feita pelos deputados Aliomar Baleeiro, Bilac Pinto e Pedro Aleixo e entregue a Castello Branco.
A redação do Ato Institucional coube a Carlos Medeiros, ficando o preâmbulo a cargo de Francisco Campos, o Chico Ciência, autor da Constituição fascista de 1937. O texto do preâmbulo é coisa de gênio (do mal) do Direito e foi responsável por excluir o sentimento de culpa por estarem atropelando a Constituição e implantando uma ditadura. A genialidade maligna de Francisco Campos aponta que a “revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da nação. A revolução vitoriosa se investe no exercício do poder constitucional. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e radical do poder constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como poder constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem capacidade de constituir o novo governo (…). Os chefes da revolução vitoriosa representam o povo e em seu nome exercem o poder constituinte, de que o povo é o único titular. (…) A revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional (…) a sua legitimação.”
Conta-se que, após entregar o texto ao general Costa e Silva e ouvir alguma perguntas sobre o conteúdo do Ato, Francisco Campos teria dito com certo desprezo que esses “detalhes seriam da alçada de Carlos Medeiros.”
É assim que se fez e se faz a democracia no Brasil, impondo-se pela força, ainda que sob a máscara da lei.