Constituição de 1891: a certidão de nascimento de um regime órfão

por Sérgio Trindade foi publicado em 03.set.25

O Brasil pariu Constituições em série. Foram sete e algumas reformas bem significativas. Tão profundas e significativas, que o texto constitucional ficou quase que inteiramente diferente.

Dadas as mudanças pelas quais o mundo passou e o quadro de quase absoluta insanidade política na qual o país vive, uma nova Constituição elaborada por uma Assembleia Constituinte exclusiva seria, provavelmente, o caminho mais correto a seguir, pois a nossa Constituição não ficou velha, ela nasceu ultrapassada, tendo em vista ter sido escrita num ambiente conceitual nacional-obscurantista, conforme qualificou Roberto Campos, um de seus elaboradores e mais ferrenhos críticos: “Tenho lido e relido o texto constituinte, um dicionário de utopias de 321 artigos. Pouco ou nada se parece com as constituições civilizadas que conheço. Seu teor socializante cheira muito à infecta Constituição portuguesa de 1976, da qual Portugal procura agora desembaraçar-se a fim de embarcar na economia de mercado da Comunidade Econômica Europeia. O voto aos 16 anos dizem copiado da Constituição da Nicarágua. A definição de empresa nacional parece só existir na Constituição de Guiné-Bissau. Em ambos os casos, nem o mais remoto odor de civilização (…)”. E entrou em tantos detalhes que se tornou “uma mistura de dicionário de utopias e regulamentação minuciosa de efêmero; é, ao mesmo tempo, um hino à preguiça e uma coleção de anedotas; é saudavelmente libertária no político, cruelmente liberticida no econômico, comoventemente utópica no social; é um camelo desenhado por um grupo de constituintes que sonhavam parir uma gazela…”.

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Os clássicos de nossa historiografia dizem, de forma praticamente unânime, que a República brasileira nasceu de um golpe militar. No dia seguinte, o país estava de ressaca.

No dia 15 de novembro de 1889, um punhado de marechais, de barbas cerradas e olhares de bronze, resolveu virar a mesa, para gosto de civis que não conseguiam mobilizar o povo, porquanto povo não existir no Brasil. Esse mesmo e quase inexistente povo que sempre foi chamado para pagar a conta, assistiu tudo de longe, como figurante de luxo. Aos seus olhos estava ali uma desfile militar, conforme frase emblemática dita por Aristides Lobo, jornalista, política a ativista republicano: “O povo assistiu bestializado a proclamação da República”.

Um imperador pacato, que gostava mais de livros do que de intrigas, embarcou para o exílio com a serenidade de quem troca de hospedaria. Em troca, recebemos um Governo Provisório que, como todo governo provisório no Brasil, sonhava ser eterno – e logo disse a que veio: o primeiro ato do novo regime não foi uma batalha, mas um decreto. Rui Barbosa, o bacharel genial e prolixo, rabiscou o famoso Decreto 01, que dava àquele improviso um verniz de legalidade. A República não nasceu no grito das ruas, mas na caligrafia dos doutores e na ponta da espada de oficiais do Exército. E o país entrou numa espécie de limbo: não havia Constituição, havia decretos, uma coleção de normas que, reunidas, pareciam uma Constituição de bolso, dessas que cabem na algibeira, mas que valiam apenas enquanto convinha aos marechais e generais.

Os militares sonhavam com ordem, os bacharéis com liberdade, e os coronéis do interior, que teriam papel de ponta no novo regime, só queriam continuar mandando. No meio desse triângulo, uma comissão foi encarregada de escrever o rascunho da nova Carta. Saldanha Marinho, Rangel Pestana, Américo Brasiliense e outros nomes de manual escolar juntaram-se para apresentar propostas. Cada um trouxe um projeto, e Rui Barbosa, como maestro do novo regime, fez os retoques finais. O resultado era um texto elegante, cheio de referências estrangeiras – Estados Unidos, Suíça, Argentina –, como se o Brasil fosse um salão onde se copia o figurino da moda.

Imagem feita com auxílio de IA

Quando a Assembleia Constituinte se reuniu, em 1890, a expectativa era de ruptura. O que saiu, em 1891, foi um arremedo. Dos 90 artigos, a maioria já estava no projeto inicial. O Brasil, esse eterno país de reformas inacabadas, fazia uma revolução sem mudar quase nada. Batizaram o novo Estado de Estados Unidos do Brasil. Era um nome grandiloquente para uma federação que nunca nascera da união de estados livres, mas da canetada que transformou províncias em estados. Copiamos o modelo americano, mas esquecemos de importar a substância.

O presidencialismo foi adotado como remédio contra a figura imperial. No lugar do monarca, um presidente eleito por quatro anos, sem direito a reeleição. Seria um cargo forte, quase cesarista, como queriam os militares positivistas. Mas a democracia era de papel: só votava quem sabia ler. Num país em que a maioria mal assinava o próprio nome, a eleição era uma farsa respeitável, em que poucos decidiam por todos. Mulheres, analfabetos, mendigos, praças militares, padres de ordem regular foram excluídos. A República foi proclamada em nome do povo, mas sem o povo e, pior, contra o povo.

O Congresso Nacional foi desenhado em duas casas: uma Câmara para o povo que não votava e um Senado para os estados que não eram autônomos. A farsa era completa: os mineiros e os paulistas logo entenderam que ali estava o instrumento perfeito para criar um rodízio de poder, depois batizada de política do café-com-leite, que manteve a República de pé por quase quatro décadas. Enquanto isso, coronéis dominavam suas regiões, mandando em votos como quem manda em bois e garantindo a supremacia política das oligarquias estaduais.

No Judiciário, nasceu o Supremo Tribunal Federal, com poderes para declarar leis inconstitucionais. Inspirado nos Estados Unidos, parecia o começo de uma democracia moderna. Mas era só aparência. O Supremo era um oráculo distante, preocupado quase que somente em defender a ordem. O povo que aguentasse o tranco – e o tronco.

O grande debate da Constituinte foi o federalismo. De um lado, os unionistas, que temiam que a descentralização levasse o país ao caos. Do outro, os federalistas radicais, que sonhavam com estados independentes. O resultado foi o meio-termo brasileiro de sempre: autonomia suficiente para que cada estado se tornasse feudo de sua oligarquia, mas com a União pronta para intervir quando a bagunça ameaçasse transbordar.

No campo tributário, a divisão parecia equilibrada: a União ficava com os impostos sobre importação, os estados com os de exportação. Na prática, São Paulo, dono do café, e Minas, sócio de São Paulo no café e dono do gado e do leite, enriqueceram. O pacto federativo virou pacto oligárquico. A República se tornou uma sociedade anônima em que os acionistas majoritários eram meia dúzia de estados, e os demais ficavam com migalhas.

A Constituição trouxe ainda uma Declaração de Direitos: inviolabilidade do domicílio, liberdade de imprensa, sigilo de correspondência. O habeas-corpus foi elevado a instituição sagrada. Parecia um salto para a modernidade. Mas no Brasil, direitos são como guarda-chuva: funcionam em dias de sol, fecham em dias de tempestade. Bastava um estado de sítio – e eles foram comuns, e tudo era suspenso. O mesmo texto que garantia a liberdade autorizava a sua suspensão. Era a Constituição bipolar, que sorria e ameaçava ao mesmo tempo.

Outra novidade foi a separação entre Igreja e Estado. Acabou-se o padroado, instituiu-se o casamento civil, secularizaram-se os cemitérios. Os republicanos positivistas celebraram a vitória da razão. A Igreja chiou, mas o Brasil, sempre sincrético, logo se acostumou a rezar em casa e casar no cartório.

Tudo parecia belo no papel, mas a realidade tratou de expor as rachaduras. O próprio Deodoro da Fonseca, primeiro presidente, dissolveu o Congresso, decretou estado de sítio e tentou governar por decreto. Caiu poucos meses depois. Floriano Peixoto assumiu e, com mão de ferro, reprimiu revoltas e governou como ditador. A Constituição recém-nascida já era uma senhora entrada em anos, enrugada e decrépita.

Nos anos seguintes, a Carta de 1891 foi tratada como convenção de hotel: respeitada na fachada, ignorada nos bastidores. Coronéis continuaram a mandar nos grotões, eleições eram manipuladas com descaro, e o Supremo a tudo apreciava com olhar bovino. O federalismo virou licença para oligarquias locais explorarem seu povo. A democracia era um palco, com atores de terno e gravata encenando um espetáculo para uma plateia invisível.

Em 1926, a farsa passou por reforma. Restringiram-se direitos, limitaram-se garantias, ampliaram-se hipóteses de intervenção federal. O habeas-corpus, que servira para tudo, foi podado: só valeria para proteger a liberdade de locomoção. A República mostrava sua cara verdadeira: tolerava liberdades até onde não ameaçassem a ordem dos de cima.

A Constituição de 1891, no fim, foi o retrato do Brasil: moderna na forma, arcaica na prática. Importamos ideias estrangeiras, copiamos instituições, mas mantivemos a exclusão. Federalismo, presidencialismo, controle judicial de leis, tudo estava lá. Mas a realidade era feita de oligarcas atrasados, de coronéis, de voto de cabresto, de fraudes eleitorais e de repressão. Era como vestir um terno inglês num corpo maltrapilho.

Ainda assim, ela deixou marcas. O presidencialismo forte, o papel do Supremo, a retórica dos direitos, a laicidade do Estado. Tudo isso sobreviveu em maior ou menor grau. Mas sobreviveu junto da tradição de rasgar a Constituição em momentos de crise, de suspender direitos quando mais se precisava deles, de governar para poucos.

O balanço é cruel: a Constituição de 1891 inaugurou a República, mas não inaugurou a democracia. Foi a certidão de nascimento de um regime que se dizia novo, mas que mantinha velhos vícios. Criamos uma Carta moderna, mas a enterramos sob práticas arcaicas. O povo, sempre excluído, assistiu de longe, como figurante de uma peça em que nunca lhe permitiram falar.

No fundo, a Constituição de 1891 foi uma crônica de costumes à moda brasileira. A cena inicial era grandiosa: militares no poder, juristas escrevendo artigos, políticos debatendo como se estivessem fundando um novo mundo. O desfecho foi melancólico: coronéis e oligarcas distribuindo favores, eleições fraudadas, estados sitiados. A República nasceu com pompa, mas cresceu com vícios. Em suma: foi uma tragédia de costumes, entrando em cena como protagonista e saindo como coadjuvante de suas próprias contradições. O palco era imponente, os figurinos eram importados, mas a peça era a mesma: o poder para poucos, a exclusão para muitos. Para quase todos.

E assim o Brasil seguiu, com sua Constituição liberal de papel e sua realidade oligárquica de ferro. O povo, sempre ele, continuava aplaudindo de fora, sem ingresso, olhando pela janela.

Um lembrete: estamos falando do nascimento da República (1889) e da Constituição que se lhe seguiu (1891) – e não da Nova República (1985) e da Carta Magna ora vigente, concebida entre 1987-1988 e parida em outubro de 1988.

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