Coronel Brasília: o poder que persiste e se transforma
Acadêmicos de gabinete e jornalistas de mesadas escrevem e fazem análises empoladas sobre a vida pública brasileira – e insistem na tese do funcionamento das instituições, como se nós fôssemos os Estados Unidos, a Alemanha, a Dinamarca.
No Brasil, o poder nunca foi apenas uma questão de instituições; ele corre pelas veias da história, atravessa gerações e se instala nos mais inesperados lugares.
Desde os tempos coloniais, quando o patriarca da casa-grande comandava imensas glebas de terra no litoral e no interior e a vida de todos à sua volta, a nação construiu uma tradição de mando pessoal e de hierarquia íntima, que se infiltrou tanto nas ruas de pedra das vilas, dos arruados e das cidades. O que chamamos hoje de política brasileira é apenas o reflexo moderno de uma cultura de poder construída a ferro e fogo, mas também com charme, favores e benefícios pessoais.
Nas origens desse poder, a casa-grande já mostrava o caminho. Os fazendeiros não apenas distribuíam ordens; distribuíam proteção, favores e pequenas dádivas aos seus dependentes. A sociedade rural, marcada pela desigualdade estrutural, foi moldando um sistema em que o mando pessoal se confundia com o cotidiano da vida social. O patriarca era ao mesmo tempo juiz, patrono e provedor, uma combinação de autoridade e cuidado, de mando e clientelismo, transformando-se em uma forma de poder mais difusa e adaptável – o que se chamaria, depois, na República, de coronelismo.
O coronelismo tradicional, o de enxada, surgido com a República Velha, consolidou-se sobretudo nas regiões agrárias, onde os fazendeiros exerciam um controle quase absoluto sobre os eleitores. Os coronéis da Guarda Nacional e os proprietários de terras não utilizavam apenas da violência ou da intimidação; sua força residia também na capacidade de prover favores, de interceder em disputas locais, de garantir empregos e benefícios mínimos aos pequenos produtores e trabalhadores. O poder se exercia no limiar entre a lei e a graça, entre o interesse público e o privado, e seu fundamento era tanto social quanto simbólico. Obedecer ao coronel era obedecer ao mundo em que se vivia, no qual as relações pessoais valiam mais do que qualquer norma formal.
Com a ascensão de Getúlio Vargas, a face do coronelismo mudou, mas não desapareceu. O Estado centralizado absorveu parte do poder local, criando uma rede complexa em que antigos coronéis sobreviveram como gestores intermediários do governo federal. Os favores, antes distribuídos na alvenaria da fazenda ou na sede da cidade, passaram a ser também mediados por cargos públicos, programas e políticas sociais. O coronel continuava presente, mas agora com o uniforme do Estado, com a habilidade de transformar o interesse público em instrumento de manutenção do mando pessoal.
A modernidade trouxe novas formas de comando. Surgiu o chamado coronelismo midiático, em que políticos e líderes utilizam veículos de comunicação – rádio, televisão e impressos – para influenciar, persuadir e até manipular a opinião pública. O coronel dos anos 1960 em diante não precisava mais percorrer quilômetros de estrada de terra para garantir votos, bastava ocupar os estúdios de rádios e televisões, moldar a narrativa e criar vínculos de dependência simbólica. Com a centralização de programas sociais e benefícios assistenciais, nas décadas recentes, o coronelismo assumiu uma dimensão ainda mais ampla; o coronel não reside mais apenas no município, mas também no Planalto Central, distribuindo recursos a partir da sede do governo federal, mantendo a tradição do favor e da obediência, agora em escala nacional.
O assistencialismo, que começou como pequenos gestos de cuidado e benefício pessoal no período da República Velha, evoluiu com o tempo. Hoje, programas como o Bolsa Família e suas variantes não apenas combatem a pobreza imediata, mas também criam um vínculo de lealdade e dependência entre o governo federal e milhões de brasileiros, vínculo que é, em muitos aspectos, uma continuação do modelo paternalista do coronel: prover e proteger, ao mesmo tempo em que se mantém a hierarquia e a obediência. Não é apenas caridade, mas poder em ação, antigo e renovado, que se ajusta às condições históricas, sociais e tecnológicas do país.

Imagem feita com auxílio de IA
É impressionante observar como o Brasil ainda preserva traços básicos e genéricos do coronelismo. O velho senhor de terras, com sua autoridade pessoal e seu senso de justiça particular, parece ter deixado um legado de práticas que se reinventam, que mudam de vestes, mas que mantêm o núcleo, a saber, a combinação de mando, favores e dependência. Hoje, esse poder é exercido de forma mais sofisticada, mas não menos eficaz. A comunicação e o assistencialismo substituíram a enxada e o chicote, mas a lógica de controle permanece a mesma.
No fundo, compreender a política brasileira exige compreender essa continuidade: do patriarca colonial ao coronel da República Velha, do gestor intermediário de Vargas ao coronel eletrônico e midiático contemporâneo, o país nunca abandonou a tradição do mando pessoal e do favor. Brasília, com sua monumentalidade moderna, tornou-se o novo alpendre do poder. Os recursos centralizados, os programas sociais e a presença midiática dos governantes transformaram a capital federal no centro de um novo tipo de coronelismo, em que os laços de dependência e lealdade se ampliam para toda a nação.
Assim, ao ler a história política do Brasil, não se deve apenas observar partidos, leis ou eleições. É necessário compreender as redes de poder que atravessam séculos e que se perpetuam em novos formatos, uma trama de autoridade pessoal, favores, cuidado e coerção que mantém o país preso a suas tradições mais profundas, ainda que sob o verniz da modernidade e da democracia formal. O coronelismo, em suas múltiplas formas, continua sendo umas das chaves para entender o poder no Brasil – ora visível, ora disfarçado, sempre presente.
O que se observa, portanto, é a notável capacidade de adaptação do poder privado e pessoal. Cada geração cria formas de exercer a autoridade, mas a lógica permanece a mesma: o controle sobre recursos, a capacidade de distribuir favores e a manutenção de uma relação de obediência que se renova a cada ciclo político. O Brasil, em sua história longa e complexa, mostra que o poder não desaparece; ele se transforma, reinventa-se e se perpetua, atravessando séculos sem perder a essência que o define desde a casa-grande até o Planalto Central.