O Brasil de estados de defesa e de sítio a golpes e tentativas de golpes

por Sérgio Trindade foi publicado em 07.abr.24

É praticamente impossível ligar a televisão hoje num noticioso e não de se deparar com notícias sobre a(s) tentativa(s) de golpe do ex-Presidente Jair Bolsonaro, por meio de um estado sítio, uma das três medidas excepcionais previstas na Constituição – as outras duas são o estado de defesa e a intervenção federal.

O estado de sítio está previsto no artigo 137 da Constituição e tem o objetivo de “retomar a normalidade constitucional” quando existe um “desequilíbrio momentâneo”. É, segundo especialistas, a medida mais dura de todas. Durante a sua vigência algumas medidas poderão ser tomadas contra pessoas suspendendo direitos fundamentais e que não poderiam ser adotadas foram do estado de sítio, que só pode ser implantado após convocação do Conselho da República.

A criação do estado de sítio nasce no constitucionalismo francês como forma de poder militar, mas passa rapidamente a ter conteúdo marcadamente político. No Brasil republicano foi uma constantes. Durante a República Velha, apenas os presidentes Campos Sales, Afonso Pena, Nilo Peçanha e Delfim Moreira não o solicitaram. Floriano Peixoto foi o primeiro a invocar o mecanismo e o fez com frequência nos três anos (1891-1894) que governou. Foram 295 dias de vigência. Artur Bernardes foi quem mais o utilizou, pegando carona nas medidas adotadas pelo seu antecessor, o paraibano Epitácio Pessoa e como forma de conter o clima de insegurança acentuado pelo contexto revolucionário de 1922. Teve, por isso, segundo o governo, caráter preventivo. Diz Edgard Carone, em sua A República Velha: II evolução política (1889-1930): “Na realidade, mantêm-se medidas discricionárias do período anterior, o que significa que a violência aparece para as oligarquias como solução aos atos revolucionários das classes médias – civis, militares – e operários. O processo de repressão é tão violento, que nunca em períodos anteriores o governo enfeixara tantos poderes excepcionais. Apesar de alguns votos contrários, o Congresso renova continuamente o estado de sítio: Epitácio Pessoa conseguira a sua prorrogação até 31 de dezembro de 1922 e, agora, Artur Bernardes a prolonga até abril de 1923 e, pela segunda vez, até 31 de dezembro de 1923”.

Pouco mais de uma década depois, o Presidente Getúlio Vargas se aproveitou do clima de radicalização política no país para arrancar do parlamento medidas excepcionais para, conforme mensagem presidencial encaminhada à Câmara de Deputados, “pacificar o país”. O estado de sítio foi aprovado em novembro de 1935 e teve vigência por trinta dias, sendo suspenso por dois dias (17 e 18 de dezembro). Em 18 de dezembro foram aprovadas emendas à Constituição que permitiam ao Presidente da República, com autorização do Congresso Nacional, “declarar comoção intestina grave com finalidades subversivas das instituições políticas e sociais, equiparada ao estado de guerra, em qualquer parte do território nacional”. Em seguida, foi prorrogado o estado de sítio por noventa dias com um novo instrumento que permitia ao Presidente Vargas a equiparar a comoção interna grave ao estado de guerra. Do final do ano de 1935 até o golpe de Estado de novembro de 1937, o Brasil foi governado ou em estado de sítio ou em estado de guerra.

Élio Gaspari, no primeiro dos volumes que escreveu sobre o período autoritário de 1964 a 1985, aponta que o Presidente João Goulart ensaiara, em outubro de 1963, um golpe de Estado, “solicitando ao Congresso a decretação do estado de sítio”, sendo abandonado pela esquerda. O esquema era depor os governadores de São Paulo (Adhemar de Barros) e da Guanabara (Carlos Lacerda) e, no limite, de Pernambuco, Miguel Arraes. Estava acertado que Lacerda seria sequestrado “por uma tropa paraquedista”, mas o plano deu errado, pois o “coronel escalado para a ação pediu ordens escritas”, obrigando o general que chefiava a operação procurar “dois outros oficiais”, que também “ficaram na mesma linha”. Quando finalmente um coronel apareceu “disposto a fazer o serviço, Lacerda já tinha partido. Desamparado, Jango se submeteu à humilhação de retirar o projeto que remetera à Câmara.” Paulo Markun, em Na Lei ou na marra (1964-1968), assim expõe o caso: “No dia 4 de outubro, Jango reagiu mandando um pedido formal de decretação de estado de sítio para o Congresso. Enquanto o documento era protocolado em Brasília, no Rio, o coronel de Artilharia, Francisco Boaventura Cavalcante Júnior, comandante do GOAeT (Grupo de Obuses Aeroterrestres), recebeu verbalmente a ordem para prender Lacerda, ‘a qualquer custo’ – expressão que no jargão militar podia significar vivo ou morto.”

Em 2016, dois parlamentares ligados à Presidente Dilma Rousseff fizeram movimentos junto às Forças Armadas, nos dias que antecederam a aprovação do processo de impeachment na Câmara de Deputados, para sondar se haveria ou não apoio para invocar o estado de defesa. O general Eduardo Villas Boas disse, em entrevista à revista Veja (mas há matérias em vários veículos de imprensa): “Nós temos uma assessoria parlamentar no Congresso que defende nossos interesses, nossos projetos. Esse nosso pessoal foi sondado por políticos de esquerda sobre como nós receberíamos uma decretação do estado de defesa”, com o objetivo, devidamente rechaçado pelo Exército, de “conter as manifestações que ocorriam contra o governo” (https://veja.abril.com.br/brasil/exercito-foi-sondado-para-decretar-estado-de-defesa-diz-general).

A democracia nunca foi, no Brasil, um regime construído sobre bases e princípios sólidos. Sempre foi um instrumento de conveniência. As provas disso são sobejas. Pincei algumas poucas para demonstrar o que afirmo.

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