O golpe de 1964 foi movimento civil-militar (1)

por Sérgio Trindade foi publicado em 02.dez.23

Próximo ano, de março para abril, fará sessenta anos do golpe que instituiu regime autoritário no Brasil por mais de duas décadas.

Tem sido comum, desde impeachment da presidente Dilma e principalmente das manifestações do presidente Bolsonaro que flertavam com o autoritarismo articulistas e especialistas apontarem a participação nociva das Forças Armadas, notadamente do Exército, nos dois momentos.

Por vezes, tais articulistas e especialistas recorrem à história para demonstrar o pouco apreço das FFAA pelo regime democrático, citando golpes de Estado ao longo do século XX, nos quais elas estiveram envolvidas.

O Brasil passou por dois regimes ditatoriais no século passado, o Estado Novo (1937-1945) e a Ditadura Militar (1964-1985). O primeiro arquitetado e conduzido por um civil com apoio militar e o segundo um condomínio civil-militar, no qual alguns simpatizantes civis e militares do golpe desfechado contra João Goulart mudaram de lado, um dos maiores defensores do regime democrático ao longo dos anos 1960-80, Ulisses Guimarães. Além disso, na linha de frente do golpe estavam os governadores Magalhães Pinto, Adhemar de Barros e Carlos Lacerda e uma imensa constelação no Congresso Nacional, sem contar com o apoio da mídia e das classes médias urbanas e do empresariado.

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A democracia era, no Brasil, uma planta ornamental. Todos elogiavam e muitos a achavam um fardo imenso e pesado.

Antes de prosseguir, cito um historiador insuspeito, Jorge Ferreira, para deixar registrado que a direita e a esquerda brasileira não nutriam grande apreço pela democracia. Segundo ele, a “questão democrática não estava na agenda da direita e da esquerda. A primeira sempre esteve disposta a romper com tais regras, utilizando-as para defender os seus interesses. A segunda, por sua vez, lutava pelas reformas a qualquer preço, inclusive com o sacrifício da democracia”.

Para outro historiador insuspeito, Daniel Aarão Reis, o golpe foi deflagrado sem grande articulação, mas fruto “da improvisação, [de] uma frente social e politicamente heterogênea, acionada pela ousadia e pela decisão de uns quantos civis e militares, liderados por um chefe que se intitulava alegremente de vaca fardada (Mourão Filho)”.

Dado o golpe (vou voltar ao assunto em textos posteriores), a autodenominada Revolução pretendeu legitimar-se sem acabar com a política. Para tal recorreu àqueles juristas que estão sempre dispostos a sacar do bolso do colete artimanhas jurídicas para legitimar patranhas. O homem da vez era uma vez mais Francisco Campos, o mesmo que escreveu a Constituição de 1937. E Chico Ciência não se fez de rogado, dando o tom do que seria o novo regime via Ato Institucional Nº 01 (AI-1), o qual no seu preâmbulo diz a que veio: “A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória. Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação, representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o único titular. O Ato Institucional que é hoje editado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em nome da revolução que se tornou vitoriosa com o apoio da Nação na sua quase totalidade, se destina a assegurar ao novo governo a ser instituído, os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa Pátria. A revolução vitoriosa necessita de se institucionalizar e se apressa pela sua institucionalização a limitar os plenos poderes de que efetivamente dispõe. (…) Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação”(https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-01-64.htm).

O AI-1 era duro, como demonstra o penúltimo dos seus artigos, o décimo – “No interesse da paz e da honra nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, os Comandantes-em-Chefe, que editam o presente Ato, poderão suspender os direitos políticos pelo prazo de dez (10) anos e cassar mandatos legislativos federais, estaduais e municipais, excluída a apreciação judicial desses atos.  Parágrafo único – Empossado o Presidente da República, este, por indicação do Conselho de Segurança Nacional, dentro de 60 (sessenta) dias, poderá praticar os atos previstos neste artigo” –, mas era mais brando que o proposto por Ulisses Guimarães (veja o livro Moisés, codinome Ulysses Guimarães, uma biografia, de Luiz Gutemberg) e alguns de seus companheiros, que defendia a cassação de direitos políticos por 20 anos.

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