O golpe de 1964 foi movimento civil-militar (6)
Antes da queda, em 1964, Jango, sem contar com a esquerda, tentara um golpe, segundo Élio Gaspari, em sua A ditadura envergonhada. Falhando, segue o autor, “infletiu o governo na sua direção”, abraçando definitivamente a “campanha pelas reformas de base”. O ponto alto da nova estratégia esteve presente no comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964. A mudança de rota do governo inflamou o conservadorismo político, notadamente o paulista, que “respondera ao comício do dia 13 com a Marcha da Família com Deus pela Liberdade em que se reuniram perto de 200 mil pessoas com faixas ameaçadoras (…).” A temperatura política subiu e no Congresso Nacional a maioria conservadora apresentou-se “disposta a bloquear os projetos de reforma e a cozinhar o surto esquerdista até o ano seguinte (…). Ao cultivar o choque com o Congresso, Goulart dava a impressão de que pretendia atropelar a sucessão, como fizera Getúlio Vargas em 1937”, com os seus partidários mais radicais falando “em ‘Constituinte com Jango’ e a defender uma reforma política que lhe permitisse disputar a reeleição, vedada pela Carta de 1946”.
O golpe de estado que derrubou o Presidente João Goulart foi deflagrado de forma antecipada na madrugada de 31 de março de 1964 e o governo, pego de calças curtas, não teve praticamente reação alguma, não articulando o propalado dispositivo militar, cantado em prosa e verso pelo general Assis Brasil, e ficando órfão de apoio sindical, tendo em vista o fracasso da greve geral proposta pelo Comando Geral dos Trabalhadores (CGT).
O golpe vencedor em março não era o único caminho golpista, conforme esclarece Elio Gaspari: “Havia dois golpes em marcha. O de Jango viria amparado no ‘dispositivo militar’ e nas bases sindicais, que cairiam sobre o Congresso, obrigando-o a aprovar um pacote de reformas e a mudança das regras do jogo da sucessão presidencial”. Miguel Arraes chegou a dizer a dizer a um amigo, de acordo com Gaspari, estar “certo de que um golpe virá. De lá ou de cá (…)”. Leonel Brizola, cunhado do Presidente da República, dizia abertamente: “Se não dermos o golpe, eles o darão contra nós”.
O golpe janguista pretendia manter o Presidente no Planalto; o que a ele se opunha desejava pô-lo para correr. Venceu o segundo, quando o dispositivo militar do general Assis Brasil se revelou uma ficção e, apesar da articulação golpista vencedora mostrar-se desarticulada, o general Castello Branco – mesmo sem desejar ser Presidente, como ele mesmo disse em vários momentos, e incorporado à conspiração pelos amigos Ademar de Queiroz e Cordeiro de Farias – foi alçado à Presidência da República, depois de alguns dias de intensas tratativas.
Os apressados generais Carlos Luiz Guedes (Infantaria Divisionária/4) e Olympio Mourão Filho (4ª Região Militar), que desconfiavam um do outro e eram alvo de desconfiança de seus superiores, adiantaram-se e movimentaram suas tropas em direção do Rio de Janeiro. Mourão acreditava que, conforme relata Gaspari, tomaria “de assalto o prédio do Ministério da Guerra em menos de 24 horas”. Para ele, caído o Forte Apache, o “resto cairia de podre”. Guedes, muito próximo ao governador mineiro Magalhães Pinto, trabalhava em linha diversa, a saber, “rebelar Minas Gerais, separando-a do governo Goulart. O resto cairia de podre”.
Sentindo-se inseguro no Rio de Janeiro, dada a movimentação das tropas de Minas Gerais em direção à antiga capital federal, Jango viajou no dia 1o de abril para Brasília e, em seguida, para Porto Alegre, onde o então deputado federal e ex-governador Leonel Brizola envidava esforços para organizar a resistência, seguindo o roteiro semelhante ao 1961. Jango, porém, vendo o apoio que o movimento deflagrado em Minas Gerais contava no meio militar e civil e antevendo uma disputa dura, com a ocorrência de uma guerra civil, desistiu do confronto e seguiu para o exílio no Uruguai. Pressionado pelas forças militares, o Presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, antecipando-se à fuga de João Goulart, declarou vaga a Presidência da República, deu posse ao Presidente da Câmara dos Deputados, Raniere Mazzili, e daí em diante um novo regime foi sendo erguido.
Mazzili subiu a rampa do Planalto, mas o poder efetivo estava com os militares por meio do Comando Supremo da Revolução, composto pelo general Costa e Silva, pelo almirante Augusto Rademaker e pelo brigadeiro Correia de Melo, com o primeiro dando as cartas. Foram duas semanas assim até a eleição, pelo Congresso Nacional, do general Castello Branco.
Os dias que se seguiram ao golpe foram de intensa repressão e atingiu os setores mais à esquerda (progressivamente a repressão foi sendo estendida a toda e qualquer pessoa que se pusesse como ameaça aos novos donos do poder). Só para dar uma ideia, o líder comunista Gregório Bezerra foi amarrado e arrastado pelas ruas de Recife e um ato institucional foi baixado para dar feição legal às arbitrariedades do regime. Centenas de inquéritos policiais militares foram abertos, com o objetivo de apurar atividades consideradas subversivas. Parlamentares foram cassados e milhares de pessoas tiveram os direitos políticos suspensos.
O golpe, apesar de contar com os militares na linha de frente, não foi urdido somente por eles. Importantes setores da sociedade brasileira – grande parte do empresariado, da imprensa, dos proprietários rurais, da Igreja católica, alguns governadores (Ademar de Barros, Aluízio Alves, Carlos Lacerda, Ildo Meneghetti, Magalhães Pinto, entre outros), fatias consideráveis de classe média – pediram, estimularam e festejaram a intervenção militar. Todos irmanados contra a ameaça esquerdista que ameaçava controlar o governo e subverter a sociedade. Para os militares envolvidos no golpe, o objetivo era restaurar a disciplina e a hierarquia nas Forças Armadas e deter a ameaça comunista que, afirmavam, pairava sobre o Brasil, conforme exprimia a doutrina de segurança nacional, segundo a qual a principal ameaça à ordem capitalista e à segurança do país não viria de fora, mas de dentro do próprio país, por meio de brasileiros que atuariam como inimigos internos, agindo para implantar, pela via revolucionária, o comunismo no país. No continente americano, Cuba era o exemplo mais citado, no entanto havia casos similares na África e na Ásia. Por isso, no front externo, o golpe foi saudado pelo governo dos Estados Unidos (e da Inglaterra). O embaixador norte-americano no Brasil, Lincoln Gordon, e seu adido militar, o coronel Vernon Walters, amigo próximo do general Castello Branco, fomentaram o movimento civil-militar e prepararam uma operação secreta, a Brother Sam, que seria responsável por oferecer apoio logístico aos militares golpistas, caso houvesse resistência tenaz das forças leais a Jango, conforme registra Elio Gaspari: “Em Washington, trabalhava-se havia dez dias na armação de uma força-tarefa naval que, em caso de necessidade, zarparia para a costa brasileira. Sua formação fora proposta pelo embaixador americano, Lincoln Gordon”. Em Na lei ou na marra – 1964-1968, Paulo Markun diz que nas primeiras horas de 1º de abril, o Presidente João Goulart “deixou o Palácio das Laranjeiras num Mercedes com chapa fria e sem escolta. Continuava presidente, mas já não governava. Pouco antes, fora informado por San Tiago Dantas e Juscelino que uma frota de guerra norte-americana estava a caminho do Brasil e que os Estados Unidos reconheceriam imediatamente o novo governo”.
Estava praticamente selado o destino de Jango, e ele não passava mais pelo Brasil.