Paralelismos

por Sérgio Trindade foi publicado em 09.nov.21

Fenando Henrique Cardoso está para Lula, como Castello Branco está para Médici.

Marx, ao se referir ao golpe de Estado de Luís Napoleão, afirma que a história se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa. Não sei se a assertiva do filósofo alemão é verdadeira, pois existem semelhanças entre processos históricos distantes no tempo.

As duas grandes fases brasileiras de crescimento econômico acentuado nos últimos cinquenta-cinquenta e poucos anos têm semelhanças significativas. O “milagre” de Médici e o “milagre” de Lula têm dois santos a serem reconhecidos.

Durante quase todo o segundo mandato de Lula cansei de ouvir comentários acerca do carisma inabalável do torneiro mecânico que, pelo seu esforço e competência políticos, chegou à Presidência da República. Lembrei-me quase sempre de duas personagens significativas da história recente do Brasil – Emílio Garrastazu Médici e Getúlio Dorneles Vargas.

Lula, inclusive, chegou a ser apontado como um novo Vargas. Mas não é necessariamente com Vargas que Lula se parece. O figurino econômico de seu governo, talvez o maior responsável pela sua popularidade recorde, está mais próximo do governo Médici. Há paralelos incontestáveis entre ambos.

Médici e Lula assumiram a Presidência da República em sequência quase imediata a um doloroso mas necessário período de estabilização econômica, levada a cabo, respectivamente por Humberto de Alencar Castello Branco e por Itamar Franco/Fernando Henrique Cardoso. Médici logo após o governo de Costa e Silva e um curto interregno no qual os três ministros militares escantearam o vice-presidente Pedro Aleixo e empalmaram o poder; Lula, após os dois mandatos de FHC.

Costa e Silva iniciou a fase do milagre brasileiro, no final dos anos 1960, que se prolongou ao longo do mandato de cinco anos de Médici. Lula chegou à Brasília para assumir um país que, após anos de inflação descontrolada, estava nos trilhos, embora não gozasse de plena saúde econômica e financeira. Ambos, Médici e Lula, são devedores de seus antecessores. Lula, de FHC; Médici (e Costa e Silva), de Castello Branco.

Sem o saneamento econômico-financeiro empreendido durante o governo Castello Branco, o milagre econômico que atingiu o auge durante o quinquênio de Médici na Presidência da República não seria possível. Deve-se dizer o mesmo do governo Lula: sem os ajustes dos anos FHC, o crescimento econômico da era Lula não teria sustentação.

O atual contexto histórico, com as rusgas nas quais estão envolvidas as principais forças políticas do país, impede um mínimo de racionalidade na discussão. A emoção, as falácias e os sofismas lançam um véu sobre o que foi resultado das ações do governo Lula e o que o seu governo deve ao de FHC.

Não há governo que seja continuidade absoluta de outro. Mas há governos que mantêm inalteradas as bases herdadas das gestões que o antecederam. E ainda há governos que são inteiramente devedores de governos anteriores. Alguns reconhecem, outros maldizem a herança.

Não há indício de que Médici negasse a boa herança legada por Castello Branco, mesmo este sendo, no seio do Exército, de um grupo adversário. Médici era da linha dura; Castello, dos moderados.

Mesmo que quisesse, Médici não poderia abdicar da herança de Castello. Não abdicando, não poderia deixar de reconhecê-la e mesmo bendizê-la. E, ressalte-se, Castello foi dos poucos presidentes brasileiros que não deixou de fazer o que devia, em matéria econômica, em nome da popularidade. Mesmo porque não estava na cadeira de presidente pelo voto popular, mas por uma intervenção que golpeou a Constituição.

Consolidada a tomada do poder e centralizada a autoridade no Executivo, Castello Branco e seu grupo voltaram-se paulatinamente para os males econômicos que assolavam o país. Não há como desconsiderar, por qualquer ótica, que a economia brasileira estava em estado crítico, no início de 1964. O Brasil estava à beira da insolvência, não havia crédito disponível no mercado internacional, a inflação galopante chegara a uma taxa anual de mais de 80%, o empresariado, nacional e internacional, com receio do quadro caótico, adiava suas decisões econômicas, exceto aquelas mais imediatas.

Para reverter o quadro, Castello Branco convocou dois dos mais experimentados economistas do país, Octavio Bulhões e Roberto Campos, e deu-lhes carta branca para pôr o país nos trilhos.

Reconhecidos pelos empresários e banqueiros e com vasta experiência no setor público, a dupla Campos-Bulhões elaborou um diagnóstico da economia brasileira num trabalho de mais de 200 páginas intitulado Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG).

O PAEG apontou que seria a inflação a principal responsável pelo desvario econômico-financeiro brasileiro. Sua causa, dizia o trabalho da dupla, era o excesso de demanda. Esta, por sua vez, foi associada aos frequentes déficits públicos e ao excesso de crédito para o setor privado. Para atender à demanda, apontavam Campos e Bulhões, a base monetária era ampliada, o que estimulava um processo violento de inflação e suas consequentes distorções – oscilações bruscas nas taxas de salários reais, desordem no mercado de crédito, entre outros. Tal desorganização afastava completamente as possibilidades de investimento a longo prazo, tão necessário para o crescimento econômico do Brasil.

Acusados de se venderem à banca internacional e ao Fundo Monetário Internacional (FMI), Campos e Bulhões receitaram um remédio que, apesar de amargo, foi muito mais leve do que o preconizado pelo FMI. E uma vez receitado, o remédio não foi dado de uma só vez, pois poderia matar o paciente; foi pingado em doses homeopáticas, num enfoque gradualista radicalmente contrário às doses cavalares e ao tratamento de choque defendido pelo FMI.

A opção econômica monetarista, tão do desagrado das correntes econômicas que gravitavam em torno do governo Goulart, demonstrou-se eficaz. O gradualismo liberal-monetarista da dupla brasileira amorteceu alguns efeitos deletérios e preparou o terreno para o crescimento econômico durante o governo Costa e Silva e, principalmente, o de Médici, entre o final da década de 1960 e o início da seguinte.

Lula perdeu duas vezes para FHC, ambas no primeiro turno, e ainda assim é apontado como carismático inabalável. Depois venceu duas eleições presidenciais, em 2002 e 2006, ambas no segundo turno, e durante quase todo o seu segundo mandato muitos comentaram que o seu carisma sólido e inarredável era o grande responsável pelos seus altíssimos índices de popularidade, como se o carisma não dependesse, nas circunstâncias em que governou, das ações racionais do governante e de resultados palpáveis.

As gestões de Itamar Franco e de Fernando Henrique Cardoso foram as responsáveis por domar o dragão da inflação, que corroeu as bases da economia brasileira por duas décadas, destruindo o poder de compra da população, especialmente dos mais pobres, e criando obstáculos para um planejamento econômico a médio e longo prazo.

O Plano Real, montado durante o período em que Itamar Franco ocupava o Palácio do Planalto, para onde foi alçado após a queda de Collor, foi sustentado por FHC, quando este, depois de convidado pelo Presidente para assumir a pasta da Fazenda, renunciou ao Ministério das Relações Exteriores e emprestou a sua credibilidade aos projetos de estabilização econômica da nova gestão.

Foi durante o tempo que FHC esteve à frente do Ministério da Fazenda que o Plano Real foi gestado. Foi graças ao Real que FHC capacitou-se para concorrer à Presidência da República, bateu Lula, que esteve durante boa parte do tempo à frente nas pesquisas pré-eleição, no primeiro turno e foi guindado ao posto de primeiro magistrado da nação. Quatro anos depois, repetiu o feito, vencendo o mesmo Lula, também no primeiro turno.

Quem está na casa dos trinta anos não sabe o que foi o quadro inflacionário brasileiro entre a década de 1970 e primeira metade dos anos 1990. Desinformados, mal-intencionados e desonestos fazem pouco caso das medidas econômicas empreendidas pelo governo Fernando Henrique. Muitos não reconhecem que grande parte das conquistas econômicas e sociais nasceram durante os anos que ele ocupou o Palácio do Planalto. Até mesmo o seu partido, o PSDB, chegou a renegar a herança por ele deixada. A história, porém, não tem como não registrar os créditos para FHC, a âncora de credibilidade política por trás do Plano Real, durante parte do governo de Itamar Franco e, depois, como Presidente da República.

O próprio Fernando Henrique Cardoso conta que iria se afastar do Ministério da Fazenda para concorrer a uma vaga na câmara de deputados, pois não tinha chances de reeleição para o senado. O Real viabilizou-o – ele um homem nascido no seio da esquerda, da qual era um intelectual orgânico – como candidato presidencial das forças do centro político nacional.

Nos seus dois mandatos (mais no primeiro), Lula manteve os pilares do Plano Real, contra o qual o seu partido fez campanha. E foi justamente pela estabilidade garantida pelo Real e ao início do saneamento das contas estatais que o ex-sindicalista eleito para comandar o país conseguiu lograr êxito, sem, no entanto, reconhecer os méritos do seu antecessor, assumindo sozinho os louros do crescimento econômico do país, em meados da primeira década deste século.

Houve, é verdade, mérito inicial em Lula: manteve, durante o primeiro mandato, as bases macroeconômicas do Real, progressivamente solapadas no seu segundo mandato e quase inteiramente destruídas na primeira gestão de Dilma Rousseff, porteira aberta para a crise econômica que o Brasil enfrenta desde meados da década passada. Não fugiu o líder petista ao figurino de Médici, que pegou um Brasil nos trilhos e o entregou ao sucessor, o general Ernesto Geisel, descarrilando.

Geisel e Dilma não tiveram (ou não quiseram), por motivos parecidos mas também distintos, condições de fazer o Brasil apertar o cinto, rearrumar as contas públicas para, a médio prazo, retomar o crescimento econômico de forma sustentável.

***

O atual ocupante do Palácio do Planalto parece seguir a mesma trilha irresponsável.

Aguardemos.

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