Paralelismos
Fenando Henrique Cardoso está para Lula, como Castello Branco está para Médici.
Marx, ao se referir ao golpe de Estado de Luís Napoleão, afirma que a história se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa. Não sei se a assertiva do filósofo alemão é verdadeira, pois existem semelhanças entre processos históricos distantes no tempo.
As duas grandes fases brasileiras de crescimento econômico acentuado nos últimos cinquenta-cinquenta e poucos anos têm semelhanças significativas. O “milagre” de Médici e o “milagre” de Lula têm dois santos a serem reconhecidos.
Durante quase todo o segundo mandato de Lula cansei de ouvir comentários acerca do carisma inabalável do torneiro mecânico que, pelo seu esforço e competência políticos, chegou à Presidência da República. Lembrei-me quase sempre de duas personagens significativas da história recente do Brasil – Emílio Garrastazu Médici e Getúlio Dorneles Vargas.
Lula, inclusive, chegou a ser apontado como um novo Vargas. Mas não é necessariamente com Vargas que Lula se parece. O figurino econômico de seu governo, talvez o maior responsável pela sua popularidade recorde, está mais próximo do governo Médici. Há paralelos incontestáveis entre ambos.
Médici e Lula assumiram a Presidência da República em sequência quase imediata a um doloroso mas necessário período de estabilização econômica, levada a cabo, respectivamente por Humberto de Alencar Castello Branco e por Itamar Franco/Fernando Henrique Cardoso. Médici logo após o governo de Costa e Silva e um curto interregno no qual os três ministros militares escantearam o vice-presidente Pedro Aleixo e empalmaram o poder; Lula, após os dois mandatos de FHC.
Costa e Silva iniciou a fase do milagre brasileiro, no final dos anos 1960, que se prolongou ao longo do mandato de cinco anos de Médici. Lula chegou à Brasília para assumir um país que, após anos de inflação descontrolada, estava nos trilhos, embora não gozasse de plena saúde econômica e financeira. Ambos, Médici e Lula, são devedores de seus antecessores. Lula, de FHC; Médici (e Costa e Silva), de Castello Branco.
Sem o saneamento econômico-financeiro empreendido durante o governo Castello Branco, o milagre econômico que atingiu o auge durante o quinquênio de Médici na Presidência da República não seria possível. Deve-se dizer o mesmo do governo Lula: sem os ajustes dos anos FHC, o crescimento econômico da era Lula não teria sustentação.
O atual contexto histórico, com as rusgas nas quais estão envolvidas as principais forças políticas do país, impede um mínimo de racionalidade na discussão. A emoção, as falácias e os sofismas lançam um véu sobre o que foi resultado das ações do governo Lula e o que o seu governo deve ao de FHC.
Não há governo que seja continuidade absoluta de outro. Mas há governos que mantêm inalteradas as bases herdadas das gestões que o antecederam. E ainda há governos que são inteiramente devedores de governos anteriores. Alguns reconhecem, outros maldizem a herança.
Não há indício de que Médici negasse a boa herança legada por Castello Branco, mesmo este sendo, no seio do Exército, de um grupo adversário. Médici era da linha dura; Castello, dos moderados.
Mesmo que quisesse, Médici não poderia abdicar da herança de Castello. Não abdicando, não poderia deixar de reconhecê-la e mesmo bendizê-la. E, ressalte-se, Castello foi dos poucos presidentes brasileiros que não deixou de fazer o que devia, em matéria econômica, em nome da popularidade. Mesmo porque não estava na cadeira de presidente pelo voto popular, mas por uma intervenção que golpeou a Constituição.
Consolidada a tomada do poder e centralizada a autoridade no Executivo, Castello Branco e seu grupo voltaram-se paulatinamente para os males econômicos que assolavam o país. Não há como desconsiderar, por qualquer ótica, que a economia brasileira estava em estado crítico, no início de 1964. O Brasil estava à beira da insolvência, não havia crédito disponível no mercado internacional, a inflação galopante chegara a uma taxa anual de mais de 80%, o empresariado, nacional e internacional, com receio do quadro caótico, adiava suas decisões econômicas, exceto aquelas mais imediatas.
Para reverter o quadro, Castello Branco convocou dois dos mais experimentados economistas do país, Octavio Bulhões e Roberto Campos, e deu-lhes carta branca para pôr o país nos trilhos.
Reconhecidos pelos empresários e banqueiros e com vasta experiência no setor público, a dupla Campos-Bulhões elaborou um diagnóstico da economia brasileira num trabalho de mais de 200 páginas intitulado Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG).
O PAEG apontou que seria a inflação a principal responsável pelo desvario econômico-financeiro brasileiro. Sua causa, dizia o trabalho da dupla, era o excesso de demanda. Esta, por sua vez, foi associada aos frequentes déficits públicos e ao excesso de crédito para o setor privado. Para atender à demanda, apontavam Campos e Bulhões, a base monetária era ampliada, o que estimulava um processo violento de inflação e suas consequentes distorções – oscilações bruscas nas taxas de salários reais, desordem no mercado de crédito, entre outros. Tal desorganização afastava completamente as possibilidades de investimento a longo prazo, tão necessário para o crescimento econômico do Brasil.
Acusados de se venderem à banca internacional e ao Fundo Monetário Internacional (FMI), Campos e Bulhões receitaram um remédio que, apesar de amargo, foi muito mais leve do que o preconizado pelo FMI. E uma vez receitado, o remédio não foi dado de uma só vez, pois poderia matar o paciente; foi pingado em doses homeopáticas, num enfoque gradualista radicalmente contrário às doses cavalares e ao tratamento de choque defendido pelo FMI.
A opção econômica monetarista, tão do desagrado das correntes econômicas que gravitavam em torno do governo Goulart, demonstrou-se eficaz. O gradualismo liberal-monetarista da dupla brasileira amorteceu alguns efeitos deletérios e preparou o terreno para o crescimento econômico durante o governo Costa e Silva e, principalmente, o de Médici, entre o final da década de 1960 e o início da seguinte.
Lula perdeu duas vezes para FHC, ambas no primeiro turno, e ainda assim é apontado como carismático inabalável. Depois venceu duas eleições presidenciais, em 2002 e 2006, ambas no segundo turno, e durante quase todo o seu segundo mandato muitos comentaram que o seu carisma sólido e inarredável era o grande responsável pelos seus altíssimos índices de popularidade, como se o carisma não dependesse, nas circunstâncias em que governou, das ações racionais do governante e de resultados palpáveis.
As gestões de Itamar Franco e de Fernando Henrique Cardoso foram as responsáveis por domar o dragão da inflação, que corroeu as bases da economia brasileira por duas décadas, destruindo o poder de compra da população, especialmente dos mais pobres, e criando obstáculos para um planejamento econômico a médio e longo prazo.
O Plano Real, montado durante o período em que Itamar Franco ocupava o Palácio do Planalto, para onde foi alçado após a queda de Collor, foi sustentado por FHC, quando este, depois de convidado pelo Presidente para assumir a pasta da Fazenda, renunciou ao Ministério das Relações Exteriores e emprestou a sua credibilidade aos projetos de estabilização econômica da nova gestão.
Foi durante o tempo que FHC esteve à frente do Ministério da Fazenda que o Plano Real foi gestado. Foi graças ao Real que FHC capacitou-se para concorrer à Presidência da República, bateu Lula, que esteve durante boa parte do tempo à frente nas pesquisas pré-eleição, no primeiro turno e foi guindado ao posto de primeiro magistrado da nação. Quatro anos depois, repetiu o feito, vencendo o mesmo Lula, também no primeiro turno.
Quem está na casa dos trinta anos não sabe o que foi o quadro inflacionário brasileiro entre a década de 1970 e primeira metade dos anos 1990. Desinformados, mal-intencionados e desonestos fazem pouco caso das medidas econômicas empreendidas pelo governo Fernando Henrique. Muitos não reconhecem que grande parte das conquistas econômicas e sociais nasceram durante os anos que ele ocupou o Palácio do Planalto. Até mesmo o seu partido, o PSDB, chegou a renegar a herança por ele deixada. A história, porém, não tem como não registrar os créditos para FHC, a âncora de credibilidade política por trás do Plano Real, durante parte do governo de Itamar Franco e, depois, como Presidente da República.
O próprio Fernando Henrique Cardoso conta que iria se afastar do Ministério da Fazenda para concorrer a uma vaga na câmara de deputados, pois não tinha chances de reeleição para o senado. O Real viabilizou-o – ele um homem nascido no seio da esquerda, da qual era um intelectual orgânico – como candidato presidencial das forças do centro político nacional.
Nos seus dois mandatos (mais no primeiro), Lula manteve os pilares do Plano Real, contra o qual o seu partido fez campanha. E foi justamente pela estabilidade garantida pelo Real e ao início do saneamento das contas estatais que o ex-sindicalista eleito para comandar o país conseguiu lograr êxito, sem, no entanto, reconhecer os méritos do seu antecessor, assumindo sozinho os louros do crescimento econômico do país, em meados da primeira década deste século.
Houve, é verdade, mérito inicial em Lula: manteve, durante o primeiro mandato, as bases macroeconômicas do Real, progressivamente solapadas no seu segundo mandato e quase inteiramente destruídas na primeira gestão de Dilma Rousseff, porteira aberta para a crise econômica que o Brasil enfrenta desde meados da década passada. Não fugiu o líder petista ao figurino de Médici, que pegou um Brasil nos trilhos e o entregou ao sucessor, o general Ernesto Geisel, descarrilando.
Geisel e Dilma não tiveram (ou não quiseram), por motivos parecidos mas também distintos, condições de fazer o Brasil apertar o cinto, rearrumar as contas públicas para, a médio prazo, retomar o crescimento econômico de forma sustentável.
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O atual ocupante do Palácio do Planalto parece seguir a mesma trilha irresponsável.
Aguardemos.