Circo Brasilândia (2)
O Circo Brasilândia não era apenas um circo, mas um estado de espírito. A lona azul com nome verde, cada vez mais remendada, parecia uma colcha de retalhos pregada com fita Durex e cola Cascolar. A cada noite, o espetáculo se repetia: público esperançoso e promessas grandiosas; na propaganda, o Circo Orlando Orfei. Cenas grotescas e apresentações comuns mostravam como o Brasilândia estava distante do Orlando Orfei. Tanto que as gargalhadas do público, ao final, misturando deboche e incredulidade, escancaravam aquilo que era a trupe circense. A fama do Brasilândia corria adiante não pela excelência, mas pelo fracasso travestido de sucesso, sua maior especialidade.
À frente dessa companhia de engodos (e tramoias) estavam Iamal Bueno Delfinno da Silva e sua inseparável esposa, Maria das Graças. Ele, sonso calculista, com aquela habilidade rara de fingir que não entendia nada para escapar de qualquer culpa. Sempre com o olhar perdido, suspirava como se refletisse sobre questões cósmicas, quando na verdade estava apenas pensando em como evitar pagar mais uma dívida ou dar mais um golpe. Ela, anã de bigode farto e autoestima intelectual inflada, recitava frases de filósofos que mal compreendia, adaptando Kant para justificar cadeiras quebradas, Nietzsche para defender quedas de trapezistas e Aristóteles para explicar a falta de animais. Maria das Graças falava com a solenidade de uma professora de Harvard, mesmo quando citava errado, e o público aplaudia porque, diante de tanta convicção, era impossível não acreditar, pelo menos por alguns segundos.
O repertório do circo era um catálogo de desastres. Os trapezistas, o próprio Iamal era um deles, nunca completavam o salto; era certeza que caía, e o público já apostava em qual lado da lona ele despencaria. O número de equilíbrio sobre o arame era uma cena clássica de desmoronamento: um passo, dois, cambaleio, queda. O palhaço, cuja função era provocar riso, acabava incendiando o próprio sapato ao tentar acender uma tocha. E o que foi engano se tornava graça. Ismael, ator experimental, apresentava sua peça O Público que se Dane, na qual os espectadores eram xingados gratuitamente e Romeu, que tinha um caso com uma adolescente de treze anos, terminava a história fugindo com a sogra. Era tão ofensivo quanto “fascinante”. Alcário, procurador do Brasilândia, transformava, com seus dois neurônios incomunicáveis, cada fracasso em tese: se um espectador caía da arquibancada que quebrava, a culpa era da gravidade; se o microfone não funcionava, tratava-se de caso fortuito irresistível.
O mambembismo traiçoeiro ia de cidade em cidade enganando o mundo enquanto a propaganda fazia a sua parte na arte de enganar e ludibriar incautos, para gáudio de mal-intencionados e de aproveitadores.
Nenhum desses números sobreviveria às críticas, frisemos, se não fosse pela rede de proteção montada ao redor do Circo Brasilândia. Primeiro havia Valdenédio Anojoso Bérgamo Gente, popularmente conhecido como Bérdigen.
Gordo, com ar de sabichão e sorriso de quem sempre tem uma fofoca pronta, sua especialidade era inventar narrativas para emparedar qualquer um que ousasse reclamar. Se uma criança era atingida por um trapezista desgovernado, logo surgia o boato de que o menino era um reles batedor de carteira. Se uma senhora protestava contra insultos durante uma peça de Ismael, Valdenédio espalhava que a coitada furtava galinhas. Bastava um cochicho maldoso dele para a vítima ser pulverizada em poucas horas e, na sequência, ser processada pelas vestais do Brasilândia.
E para blindar o Brasilândia diante do Estado surgiam os irmãos gêmeos Furtado. José Felipe, delegado de polícia, especialista em perder boletins de ocorrência. Ninguém nunca conseguia registrar uma queixa contra o circo: os nomes sumiam, as páginas eram trocadas, os carimbos desapareciam misteriosamente. Já Felipe José, promotor de justiça, tinha talento ainda mais fino: arquivava processos com justificativas que fariam rir até um pimeiranista de Direito. Quando um grupo tentou processar o Brasilândia por fraude na venda de ingressos, Felipe José apareceu em juízo para declarar que “fraude é apenas uma questão de interpretação semântica”. E a ação desapareceu como fumaça. As ações sumiam porque a dupla Furtado contavam com o apoio de um juiz tão salafrário quanto ela.
Com Valdenédio “Bérdigen” inventando, José Felipe abafando e Felipe José enterrando, o Brasilândia estava imune. Cada desastre, em vez de provocar escândalo, virava anedota. Cada reclamação, em vez de denúncia, transformava-se em fofoca contra o próprio reclamante. E de anedota e anedota e fofoca e fofoca, o Brasilândia crescia. O público, atraído pela fama de tragédia constante, lotava a arquibancada para testemunhar novos vexames, novas mentiras e novas fraudes. Crianças iam na esperança de voltar para casa com balão ou com gesso no braço. Adultos iam pelo prazer mórbido de assistir ao espetáculo da incompetência e da calhordice. Até turistas começaram a chegar, curiosos para ver o circo que transformava a falência em modelo de sucesso.
Maria das Graças, é claro, justificava tudo em termos filosóficos. Quando o trapezista despencou dentro do carrinho de pipoca, ela declarou solenemente: “Nietzsche já dizia que precisamos de abismos para nos reinventar. Hoje, presenciamos o artista encarar o abismo do milho estourado.” O público aplaudiu, não porque acreditasse, mas porque era impossível resistir à segurança com que dizia disparates. Quando o palhaço incendiou o próprio sapato, Graça explicou que aquilo era uma metáfora do homem em conflito com o fogo da existência. E quando Ismael insultou uma senhora chamando-a de “vaca de rodoviária”, Graça suspirou e citou Sartre: “O inferno são os outros, principalmente quando se ofendem sem compreender a arte”.
Enquanto isso, nos bastidores, Valdenédio corria de um lado para outro, perseguindo repórteres e espalhando boatos com a mesma facilidade de quem sopra uma bexiga. José Felipe arquivava ou sumia com mais um boletim de ocorrência, Felipe José sepultava outro processo, e o Brasilândia seguia inabalável. E quando tudo isso dava errado, eis que surgia o Picareta bombadinho, de quem falaremos mais à frente para proteger a patota.

Imagem feita com auxilio de IA
O espetáculo virou patrimônio da própria mediocridade. O público já não ia em busca de arte, mas para rir do colapso alheio. Cada queda, cada incêndio, cada insulto era festejado. Quanto pior, melhor. E Iamal e Graça, protegidos pelos gêmeos e alimentados pelas despautérios de Valdenédio, brindavam com vinhos finos, certos de que tinham descoberto a fórmula da eternidade circense: fracasso planejado, desastre encenado, impunidade garantida.
E assim o Circo Brasilândia seguia, entre trapézios caídos e sapatos em chamas, como um império do vexame. Não havia lei, não havia crítica, não havia lógica que o derrubasse. A lona azul com letreiro verde tremia ao vento como bandeira nacional de um país imaginário onde a incompetência era celebrada e os agentes da lei trabalhavam, ironicamente, contra contribuintes e cidadãos. E todos sabiam que o próximo ato seria ainda mais desastroso, afinal no Brasilândia o fracasso não tinha fim. Era apenas o início de uma nova apresentação ou de uma nova temporada.