Fantasmagoria

por Sérgio Trindade foi publicado em 19.dez.25

A imprensa brazuca parece ter descoberto uma forma confortável e intelectualmente preguiçosa de sobreviver ao noticiário: requentar factoides que já não movem uma vírgula da realidade política, mas que ainda rendem cliques, likes e indignação reciclada. Alimenta-se uma polarização artificial com o bolsonarismo residual, como se o país ainda estivesse diante de uma ameaça em marcha, quando, na prática, o que resta são personagens fora do jogo, sobreviventes chamuscados de um incêndio político já extinto.

Tomemos alguns casos como exemplo.

Carla Zambelli, por exemplo, não tem qualquer relevância objetiva se permanecerá presa na Itália ou se será deportada para cumprir pena no Brasil. Ela já não é deputada, não será candidata e não dispõe de capital político capaz de interferir no debate público. Trata-se, talvez, de uma figura juridicamente interessante, mas politicamente morta. Insistir nesse enredo como se dele dependesse o destino da democracia brasileira (se esse troço ainda existe) é transformar o noticiário em novela policial de reprises infinitas e enfadonhas.

Igual raciocínio vale para Eduardo Bolsonaro. Seus movimentos erráticos – ficar nos Estados Unidos, voltar ao Brasil, ser ou não preso – são tratados como se encerrassem algum potencial de reorganização da extrema direita. Não encerram. O filho 02 de Jair Bolsonaro já não é deputado, não será candidato e não possui densidade política própria. Vive de um sobrenome cujo prazo de validade venceu – ou está prestes a vencer. O noticiário, contudo, o trata como se fosse uma espécie de general conspirador, quando na verdade ocupa o papel bem mais modesto de ex-parlamentar em busca de palco.

Ramagem entra no mesmo balaio. Fugitivo, ex-deputado, inelegível, fora do jogo. Ainda assim, seu nome reaparece diariamente, como se o simples fato de existir fosse uma ameaça latente às instituições. Não é. O que existe é um excesso de zelo narrativo da imprensa, que confunde relevância jurídica com importância política, erro elementar, meus três ou quatro leitores, para quem se propõe a interpretar a vida pública.

E Jair Bolsonaro? Aqui a insistência chega a ser quase patológica. Debate-se se cumprirá trinta anos de prisão ou três, como se essa diferença tivesse algum impacto concreto no futuro político do país. Em qualquer cenário plausível, Bolsonaro está fora do jogo. Provavelmente não será anistiado neste ou no próximo ano, permanecerá inelegível e, mais do que isso, encontra-se fisicamente debilitado, com limitações evidentes para qualquer voo político de longo alcance. Seu tempo de vida útil como liderança já se encerrou. Transformá-lo em ameaça permanente é ignorar a lógica básica da política, que não se rege por fantasmas, mas por correlação real de forças.

Imagem feita com auxílio de IA

Ao insistir nesses temas, sobretudo nos meios de comunicação de alguma forma alinhados ao governo, a imprensa presta um serviço duplamente ruim. Primeiro, mantém artificialmente viva uma polarização que já não organiza o tabuleiro político. Segundo, cria a falsa percepção de que a democracia brasileira vive sob risco constante de personagens que, na prática, não dispõem mais de instrumentos institucionais, eleitorais ou simbólicos para atacá-la. São refugos de incêndio tratados como brasas incandescentes.

Esse comportamento é vergonhoso não apenas pelo empobrecimento do debate público, mas pelo desperdício de uma oportunidade histórica. O país enfrenta problemas estruturais graves: crescimento econômico pífio, baixa produtividade, crise educacional, insegurança jurídica, deformações no pacto federativo, captura do Estado por corporações e oligarquias regionais. Tudo isso exigiria uma imprensa vigilante, investigativa, capaz de deslocar o foco do passado para o futuro.

A imprensa poderia – e deveria – cumprir um papel civilizatório, iluminando os dilemas reais do país, fiscalizando políticas públicas, questionando consensos fáceis, expondo contradições do poder, inclusive do governo ao qual hoje se alinha. Poderia ajudar a formar uma cidadania menos emocional e mais racional, menos reativa e mais exigente. Poderia, enfim, contribuir para a maturidade democrática, em vez de infantilizar o debate com vilões reciclados. Entretanto prefere o caminho curto do factoide. Prefere a polarização de conveniência à análise incômoda. Prefere falar dos mortos-vivos do bolsonarismo a encarar os vivos problemas do Brasil. Ao atuar desta forma, a imprensa distorce a realidade e trai sua função pública.

A democracia é coisa abstrata que tem realidade concreta e não precisa ser protegida de fantasmas. Precisa, sim, ser fortalecida com informação relevante, crítica honesta e coragem editorial. Tudo o mais é ruído. E ruído requentado.

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