Juvino Barreto: o industrial humanista
Há pessoas que nascem para provar que rótulos sociais são mentirosos porque são preguiçosos. Juvino Barreto foi um desses casos, um industrial que, se fosse personagem de romance, confundiria marxistas, liberais e cronistas de botequim. Em pleno final do século XIX, quando Natal ainda cheirava a sal e a preguiça litorânea, ele ergueu uma fábrica de tecidos na Ribeira – ali onde hoje é a Caixa Econômica Federal – e botou o Rio Grande do Norte para fiar, tecer e pensar no futuro.
A sua Fábrica de Tecidos do Natal produzia pano grosso, resistente, popular e barato. Nada de seda francesa, nada de luxo. Era tecido para o povo, para o corpo suado da cidade. E, vejam só, meus três ou quatro leitores, ele prosperou com isso, o que já seria um pecado capital para quem acredita que o lucro e a generosidade são inimigos mortais. Mas Juvino parecia ignorar as lições de Marx e os manuais de sociologia de botequim. No seu testamento, deixou dinheiro para fundar um hospital, uma escola para meninos e outra para meninas. Em vez de erguer mais um sobrado ou mandar construir um jazigo faustoso, preferiu investir em gente – o que, vamos e venhamos, é um luxo que poucos ricos se permitem.
Parte das doações foi para o Colégio Santo Antônio, dos irmãos Maristas; outra, para o Colégio Imaculada Conceição, das irmãs Doroteias. Também deixou fundos para a construção de um hospital. A elite natalense, acostumada a medir bondade pelo tamanho do bigode e da bengala, deve ter achado aquilo uma excentricidade. Um industrial que doa para colégios e hospitais? Um capitalista com alma de padre e sensibilidade de artista? Aparentemente, sim. A sua morte, em 9 de abril de 1901, encerrou a vida de um homem e inaugurou o mito discreto de um benfeitor que misturava algodão e caridade no mesmo tear.
Nascido em Aliança, Pernambuco, em 1847, Juvino César Paes Barreto foi um pioneiro da industrialização potiguar – e, se quisermos ser precisos, um dos primeiros no Rio Grande do Norte a entender que o progresso não se faz apenas com discursos inflamados e cafés fumegantes. Em 1888, fundou a Fábrica de Fiação e Tecidos de Natal, a primeira indústria têxtil do estado, equipada com maquinário importado da Inglaterra, incluindo uma reluzente máquina Lowell, símbolo da modernidade industrial. Aquilo era o futuro chegando pela Ribeira, de navio e sotaque britânico.
A inovação não ficou apenas no tear. A fábrica foi, também, a primeira a usar iluminação elétrica em Natal, em 1893, quando a cidade ainda dormia à luz de lamparina e sonho. É como se o potiguar nascido em Pernambuco, sem saber, tivesse acendido o interruptor do século XX antes de todo mundo. A fábrica se tornou o coração pulsante de uma Natal que, aos poucos, trocava o rumor dos bois pelo ronco das engrenagens.
Mas o que faz de Juvino Barreto uma figura ainda mais desconcertante é seu lado humanista, um traço que desmente as caricaturas fáceis do burguês explorador. Ele implementou ações de bem-estar para seus funcionários, ajudou a libertar escravizados e acreditava sinceramente que a prosperidade devia ser compartilhada. Era o tipo de homem que, se vivesse hoje, seria confundido com um liberal de esquerda ou um socialista de direita.

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O seu palacete, erguido na antiga Vila Barreto – hoje onde está o Colégio Salesiano São José – foi o primeiro prédio residencial da cidade a ter iluminação elétrica. Imagine o espanto dos natalenses ao ver o casarão aceso como uma árvore de Natal permanente, num tempo em que a noite ainda pertencia às mariposas e aos fantasmas. Era o símbolo perfeito de seu espírito: moderno, curioso e, acima de tudo, iluminado por dentro.
A visão dualista que divide o mundo entre opressores e oprimidos é tentadora – simples, fácil de decorar e de vender em sala de aula. Mas, como toda simplificação, ela falha diante de personagens como Juvino Barreto. Ele não se encaixa nem no molde do burguês movido pelo mau egoísmo, nem no do santo abnegado. Era uma criatura de carne, osso e nervos, que via no trabalho e na educação não instrumentos de dominação, mas caminhos para a dignidade humana. Sua existência desafia o clichê de que riqueza e altruísmo não se misturam.
O humanismo clássico e moderno, aquele que vai de Erasmo a Kant, de Montaigne a Thomas More, parece descrever melhor esse tipo de postura, pois para o humanista, a grande questão não é “a quem isso serve?”, mas “como isso melhora a condição humana?”. Barreto acreditava, à sua maneira, que a prosperidade material só se justifica quando multiplica oportunidades. A sua fábrica, com seus teares e motores, era também uma escola prática. E é isso que o põe par’além de qualquer rótulo político.
Até o século século XIX, o mundo foi fértil em dualismos: capital versus trabalho, fé versus razão, ciência versus moral. Juvino Barreto, talvez sem se dar conta, resolveu o impasse com um pragmatismo luminoso: ao mesmo tempo em que modernizava a economia local, espalhava um tipo raro de civilidade. É como se dissesse, em voz baixa, que a ética não é o contrário do lucro, mas o seu aperfeiçoamento.
É claro que há quem torça o nariz para esse tipo de história. Os dogmáticos do ressentimento sempre preferem acreditar que o rico é vilão e o pobre é vítima. São os mesmos que acham que generosidade é propaganda e que filantropia é culpa travestida de caridade. Mas a figura de Juvino Barreto desmancha essas certezas com a mesma suavidade com que o algodão se transforma em tecido. Ele mostra que há virtudes discretas no ato de fazer, e que há moralidade, sim, no sucesso quando este se põe a serviço dos outros.
Talvez o segredo esteja em um tipo de humanismo prático, aquele que não precisa citar Aristóteles para agir bem. Juvino Barreto não escreveu tratados, mas construiu espaços para que outros aprendessem. Não pregou a igualdade em palanques, mas financiou colégios que formaram gerações. Não fundou um partido, mas criou empregos. E se isso não é humanismo em ação, não sei o que mais seria.
Se a história de Juvino Barreto tivesse virado peça, ele seria retratado como um industrial tragicamente humanista, cercado por operários gratos e invejosos, iluminado por lâmpadas elétricas e dúvidas morais. Ou um personagem irresistível, um capitalista gentil, com bigode retorcido e uma risada capaz de desmontar qualquer assembleia de revolucionários. A verdade, contudo, é mais simples e, talvez,, ainda mais bela: Juvino Barreto foi um homem que acreditou, antes de todos, que o progresso só tem sentido se for compartilhado.
E, convenhamos, meus três uu quatro leitores, isso é de uma atualidade escandalosamente linda.