Natal século XX: trampolim em duas vias e em dois momentos
O texto que segue é continuação de outro publicado também neste espaço, há uma semana (http://historianosdetalhes.com.br/historia-do-rn/a-importancia-geopolitica-da-capitania-do-rio-grande-e-de-natal-nos-seculos-xvi-e-xvii/).
O Brasil merece um lugar de destaque na história da aviação, pois as glórias da invenção do avião recaem sobre os irmãos Wilbur e Orville Wright, nascidos nos Estados Unidos, e sobre o brasileiro Alberto Santos Dumont.
Uma das grandes novidades na primeira guerra mundial foi a utilização ao avião. As grandes potências mundiais tentaram aperfeiçoá-lo militarmente aumentando a autonomia de voo e o seu poderio bélico. No entanto, isso só foi feito no entreguerra, quando um dos grandes desafios dos pilotos era a travessia do oceano Atlântico, mais precisamente no Atlântico Sul, dado que na porção norte a travessia seria impossível naquele momento, em virtude das grandes distâncias a serem percorridas, entre a Europa e as Américas do Norte ou Central, e da curta autonomia de voo dos aviões da época. A rota Dakar-Natal tornou-se praticamente obrigatória para garantir a transposição atlântica.
Bem antes das primeiras travessias do Atlântico Sul, o Rio Grande do Norte já ocupava papel de relevo na história da aviação, pois entre os grandes aeronautas do início do século XX encontrava-se o norte-rio-grandense Augusto Severo, morto em Paris, num acidente, a bordo do balão Pax.
Embora tenha o apelido de “o pioneiro esquecido”, Augusto Severo é relativamente bem conhecido no Brasil e no exterior, por seus estudos sobre voos de balões e dirigíveis, sendo inclusive nome de rua em Paris (https://www.fab.mil.br/noticias/mostra/22084/HOMENAGEM—Augusto-Severo-completa-113-anos-de-morte).
Outros três norte-rio-grandenses também podem ser inscritos na história da aviação: João Meneses de Melo (sargento Meneses), Juvenal Lamartine de Faria e Fernando Gomes Pedroza. O primeiro, militar que se destacava na aviação no Campos dos Afonsos, embora desconhecido no Rio Grande do Norte, chegou a ser homenageado na imprensa carioca na época (27/10/1920) do acidente que ceifou sua vida. Os outros dois foram possivelmente os maiores responsáveis pelo impulso que a aviação teve no Rio Grande do Norte, “culminando com a implantação do Campo de Pouso de Parnamirim, transformado depois na maior base aérea da América do Sul na Segunda Guerra Mundial”, de acordo com Pery Lamartine, em sua obra Epopéia nos Ares.
Foram Juvenal Lamartine, governador do estado, e Fernando Pedroza, empresário, que se uniram e fundaram, em 29 de dezembro de 1928, o Aeroclube do Rio Grande do Norte, quando então existia no Brasil, segundo Pery Lamartine, somente o Aeroclube do Rio de Janeiro.
Registre-se que o governo de Juvenal Lamartine coincidiu com a organização da aviação civil brasileira e, a partir daí, o histórico de Natal é glorioso. Devido à sua privilegiada posição geográfica, Natal teve um papel fundamental nas travessias transoceânicas. E foi justamente procurando desenvolver esse espírito aventureiro que o Aeroclube de Natal foi fundado. No mesmo local foi criada uma Escola de Aviação, chefiada por Djalma Petit. Também foram construídos campos de pouso em vários municípios do estado.
Desde 1922, quando o hidroavião Sampaio Correa, pilotado pelo cearense Pinto Martins, pousou nas águas do rio Potengi, Natal passou a fazer parte, conforme registra Pery Lamartine, da “rota dos grandes ‘raids’ que envolviam a América do Sul”. Vários pilotos famosos na história da aviação tiveram a vida ligada a Natal ou passaram pela cidade, que se acostumou “a ser sobrevoada por complicadas máquinas voadoras e seus corajosos ocupantes”, visto que a localização geográfica estratégica “motivava os homens da terra a se engajarem no movimento aeronáutico que se iniciava, apesar do ceticismo dos conservadores. Concomitantemente, o governo do estado construiu campos de pouso pelos vários municípios do interior e deu “apoio decisivo às companhias internacionais de transporte aéreo, a PANAM americana, a CONDOR alemã e a CGA (Compagnie Générale Aeropostale) francesa, que se instalaram em Natal, onde permaneceram até que a Segunda Grande Guerra interrompeu aqueles serviços. Essa efervescência atraiu grandes pilotos e aventureiros para Natal. Entre os mais importantes podemos citar o francês Jean Mermoz, que visitou Natal com frequência, a partir de 1930, quando inaugurou a travessia do Atlântico Sul conduzindo malas postais. Entre 1930 a 1936, diz Pery Lamartine, Mermoz “conviveu fraternalmente com os natalenses”, montando inclusive residência em Natal, no cruzamento da rua Trairi com a Campos Sales (Vila Barros), onde descansava das “fatigantes travessias em aviões desprovidos de conforto e segurança”; o também francês Saint-Exupéry, autor de um dos livros mais lidos no mundo (O Pequeno Príncipe), foi muito mais um pensador do que um ás da aviação, muito embora tenha demonstrado grande habilidade na condução de todos os tipos de aviões surgidos na sua época. Segundo Pery Lamartine, ele “só esteve na América do Sul (morava em Buenos Aires) no período entre Outubro de 1929 e Janeiro de 1931, quando foi nomeado Diretor da Aeroposta Argentina, uma subsidiária da empresa francesa Latécoère”. É provável, muito embora haja discordâncias entre estudiosos, que suas ocupações na empresa o fizessem vir a Natal, porém não com muita frequência, dada a grande distância entre Natal e Buenos Aires e a pouca potência dos aviões da época (https://www.brechando.com/2020/01/saint-exupery-realmente-veio-a-natal/); os italianos Ferrarin e Del Prete, cujas presenças em Natal são lembradas por um monumento de grande valor arqueológico: a Coluna Capitolina. Realizaram um dos maiores feitos da história da aviação: num voo de 59 horas, de Roma ao Rio Grande do Norte (Touros), bateram o recorde de resistência (https://www.bbc.com/portuguese/geral-44719606);
Paul Vachet foi, no dizer de Carlos Peixoto, em sua A história de Parnamirim, um segundo padrinho de Parnamirim (os outros dois foram o capitão Luís Tavares Guerreiro, Comandante do 29º Batalhão de Caçadores do Exército instalado em Natal. Ele procurado por Alberto Roseli e pelo comerciante Manuel Machado, que queriam que ele guiasse “o piloto francês Paul Vachet na procura de um terreno onde a Aéropostale instalaria o campo de pouso para ser a cabeça da linha transatlântica na América do Sul”; e o comerciante português Manuel Machado, que doou “uma área de mil metros quadrados a Paul Vachet, que depois fez nova escritura transferindo o terreno a CGA. Em troca, a M. Machado & Cia foi contratada para desmatar, limpar, nivelar e cercar o terreno onde seria construído o aeródromo). Esteve no Brasil desde 1925, abrindo rotas aéreas entre Buenos Aires e várias capitais brasileiras. Foi entre 1925 e 1927 o único representante da Latécoère na América do Sul; Ítalo Balbo, piloto italiano que, quando Ministro da Aviação da Itália, veio a Natal comandando uma esquadrilha (https://www.grandeponto.com.br/blog/post/1931-como-italo-balbo-chegou-a-natal).
A inauguração do Aeroclube, com dois aviões, pistas para pouso e uma escola de pilotagem, iniciou um período áureo na história da aviação para Natal. O governador Juvenal Lamartine ofereceu à nascente instituição, conforme Itamar de Souza, em A República Velha no Rio Grande do Norte (1889-1930), “um edifício do Estado para servir de sede, um crédito de 200 contos de réis para a sua organização inicial e um terreno bastante amplo, na avenida Hermes da Fonseca, destinado a ser campo de decolagem e de pouso da referida entidade. Ali foi criada a Escola de Aviação, dirigida pelo comandante Djalma Petit, Diretor Técnico do citado Aero Club, que preparou cinco pilotos de turismo. (…) O Aero Club de Natal foi inaugurado oficialmente no dia 29 de dezembro de 1929”. O seu funcionamento e “a expansão das atividades da Aéropostale”, posteriormente absorvida pela Air France em 1933, segundo Carlos Peixoto, exigiu a ampliação do campo de pouso de Parnamirjm. Para garantir a instalação e a ampliação da Aéropostale no Rio Grande do Norte, o então governador José Augusto Bezerra de Medeiros encaminhara mensagem à Assembleia Legislativa, por meio da qual anunciava a construção de “uma estrada de rodagem, ligando Natal ao campo de aviação em Pitimbu”, caminho carroçável que saía “do caminho que levava ao porto dos Guarapes, em Macaíba, passava pelo engenho Pitimbu e acompanhava a linha férrea Natal/Nova Cruz, até o novo campo”. Dois anos após o início das operações do campo de pouso do Pitimbu, ele “já era um dos melhores e mais bem equipadas campos de pouso da Aéropostale, contando com torres de rádio, sinalização, hangares, oficinas, armazéns, poços artesanais e alguns chalés para hospedar os pilotos e as famílias dos funcionários da administração”, novos aviões eram testados e utilizados, “substituindo os agora antiquados Lat-25´”. O percurso Natal-Dakar (o pesquisador e historiador Tarcísio Medeiros, em Aspectos Geopolíticos e Antropológicos da História do Rio Grande do Norte, diz ter encontrado “provas de que o primeiro piloto a fazer a travessia aérea Natal/Dakar foi o australiano Bert Hikler, voando em um monoplano de fabricação Pruss Moth, equipado com motor Gipsy de 120 HP, prefixo GABXY, (…) na companhia solidária de um saguim comprado em Fortaleza, Ceará) passou a ser um trajeto regular da aviação internacional (foram 18 travessias sem incidentes em 1934), sem contar a abertura de uma linha Natal-Buenos Aires, afiança Carlos Peixoto, e foi primordial no esforço Aliado durante a Segunda Guerra Mundial, quando Natal desempenhou, uma vez mais como ponto estratégico, papel de destaque no cenário internacional e na história da aviação. Além disso, como registra Pery Lamartine, o próprio esforço de guerra fez o governo brasileiro “investir na reserva aérea abrindo os Aero-Clubes e oferecendo cursos de pilotagem subvencionados aos jovens pelo Brasil a fora” (sic).
De 1939 a 1941, os Estados Unidos foram quase que somente meros espectadores. Entretanto, apesar de não se envolver diretamente no conflito nesse período inicial do conflito, os Estados Unidos tinham uma grande preocupação com o expansionismo alemão. O general George Marshall preocupava-se sobremaneira com as tendências do governo brasileiro, pois sabia da importância estratégica que o Brasil desempenharia no conflito caso ele se irradiasse em direção à África e à América. Em 1941, as coisas se precipitaram, após o ataque japonês à base norte-americana no Havaí e os Estados Unidos declararam guerra às potências do Eixo (Alemanha, Itália e Japão).
Em virtude das condições técnicas da aviação da época, e ao domínio nazista em quase todo o continente europeu, era praticamente impossível enviar tropas para a Europa, pelo Atlântico Norte. Por via marítima havia a presença ameaçadora dos submarinos alemães. Buscou-se, então, como solução, a antiga rota utilizada pelos aviadores do início do século XX: Natal-Dakar. A utilização dessa rota, entretanto, dependia da posição política do governo brasileiro quanto ao desenrolar do conflito.
Na segunda metade da década de 1930, o presidente Getúlio Vargas havia implantado uma ditadura no Brasil de feição fascista. As autoridades brasileiras eram, segundo uma testemunha dos acontecimentos, complacentes com os alemães e italianos que viviam no país. Não eram poucos, diz João Maria Furtado, os atos de espionagem e sabotagem por meio de estações clandestinas de rádio. As transmissões dessas estações para Roma e para Berlim se intensificarem de tal forma que exigiram providências das autoridades locais, obrigadas a prender “um alemão (Gurgel Luck) e um italiano (Guilherme Lettieri), notoriamente os residentes aqui com possibilidade de serem os responsáveis por essa espionagem. Sabe-se que foram apreendidos aparelhos transmissores, mas nada foi publicado pela imprensa, e os dois detidos ficaram em regime de quase liberdade, inclusive Lettieri teve prisão domiciliar, comentando-se que as autoridades policiais lhe frequentavam a casa-presídio e lá se banqueteavam”.
Entre os principais auxiliares do governo Vargas existiam simpatizantes dos regimes alemão e italiano (Eurico Dutra, Goés Monteiro) e do liberalismo norte-americano e inglês (Oswaldo Aranha). A pressão dos Estados Unidos, reforçada por empréstimos concedidos por bancos daquele país, precipitou o rompimento das relações diplomáticas do Brasil com a Alemanha, a Itália e o Japão. O afundamento de navios brasileiros levou o nosso governo a declarar guerra ao Eixo.
Clyde Smith, em Trampolim para a Vitória, citando Bynum Weathers, afirma que tão logo a guerra foi deflagrada na Europa, uma missão do governo norte-americano junto ao governo brasileiro, comandada pelo major Delos Emmons, inspecionou o litoral do Brasil e constatou que “a área de Natal era, realmente, crucial para a defesa dos Estados Unidos continental e do Canal do Panamá contra forças hostis.” Citando Paulo Viveiros, Lenine Pinto no livro Natal, USA – II Guerra Mundial: a participação do Brasil no Teatro de Operações do Atlântico Sul, diz que mesmo não estando em guerra, “os militares ianques estabeleceram uma linha de tráfego por Natal, antes que o governo brasileiro autorizasse o início das obras que transformariam o Campo de Parnamirim em base aérea.” Para ele, a situação podia ser explicada pela caótica situação no Oriente, onde a China entrava em colapso frente aos japoneses, e ao “súbito deflagrar de hostilidades entre italianos e ingleses na África”, que “alteraram a condição de Natal como ‘weak spot’ (ponto fraco), na consideração de medidas defensivas, passando, daí em diante, a ser cogitada como “jumping off point”, o único local viável por onde saltar o Atlântico para levar recursos às linhas de frente”.
Os Estados Unidos estabeleceram bases no Nordeste do Brasil por considerarem a região “especialmente desarmada”, visto a maioria das tropas brasileiras concentrarem-se na região Sudeste. Segundo Thomas Skidmore, na sua Uma história do Brasil, o governo Vargas fez, em 1941, incontestes movimentos “em direção aos Aliados ao aprovar um projeto da Pan American Ariways (sob contrato do exército dos EUA) para modernizar aeroportos no Norte e Nordeste”. No início de 1942, em conferência na cidade do Rio de Janeiro, com o apoio de praticamente todos os países da América Latina, foi decidido o rompimento com as potências do Eixo.
Para Morison, citado por Lenine Pinto, a proximidade entre o cabo de São Roque e o continente africano, tornava-o “um sério risco à causa americana” e que embora “o Brasil fosse um aliado valioso, era também altamente vulnerável. Se os nazistas, com a colaboração de Pétain e Laval (chefes do governo de Vichy), pudessem controlar o estreito atlântico entre o Cabo de São Roque e as ilhas do Cabo Verde, estariam aptos a cortar as linhas de comércio exterior e muito das linhas de cabotagem do Brasil”. Dessa forma, aponta Clyde Smith, o governo norte-americano, por meio do Ministério da Guerra “concluiu que a única solução prática para o problema da defesa seria a construção e melhoramento dos aeroportos no nordeste do Brasil. Essa construção seria executada em nome do Programa de Desenvolvimento dos Aeroportos e envolveria as linhas aéreas Pan American e suas subsidiárias”. Um grande contingente de funcionários do governo norte-americano instalou-se no Brasil, atuando em consonância com as orientações do governo brasileiro e, segundo Skidmore, “oficiais brasileiros agora cooperavam estreitamente com a Marinha e a Força Aérea norte-americanas na guerra contra os submarinos, um processo que incluía o fornecimento aos brasileiros de aviões e navios norte-americanos, bem como de armas terrestres. Entretanto, isso implicava a necessidade de pessoal de manutenção do Exército dos EUA no Brasil. Em 1943, brasileiros e norte-americanos construíram uma rede de modernas bases militares aéreas e marítimas no litoral do Nordeste”.
Natal do final dos anos 1930 e início dos anos 1940 era uma provinciana capital de estado. Seus pouco mais de 52 mil habitantes espalhavam-se por sete bairros: Alecrim, Cidade Alta, Lagoa Seca, Ribeira, Rocas, Petrópolis e Tirol, todos mal servidos por deficientes redes de distribuição de energia elétrica e água. Foi nessa cidade que a presença norte-americana se intensificou lenta e progressivamente entre 1941 e 1942, principalmente quando a guerra se expandiu e atingiu o norte da África.
A participação do Brasil na guerra foi de fundamental importância para Natal, que se transformou em ponto de passagem das tropas norte-americanas que se dirigiam para o front no continente africano. Segundo Clayton Knight, citado por Lenine Pinto, coube ao coronel Robert Olds vir ao Brasil, a mando do presidente Franklin Delano Roosevelt, “fazer arranjos em favor do uso de Natal como base de travessia”. Um mês depois, por meio do Decreto 3.462/41, foi permitida à Panair do Brasil “construir, melhorar e aparelhar” aeroportos ao longo do litoral Norte-Nordeste. Uma infração, agora binacional (do Brasil e dos Estados Unidos), ao estatuto da neutralidade, que a compostura, tanto quanto razões de segurança, mandavam fosse mantida em segredo. Tentando encobrir a presença de militares norte-americanos pelas ruas de Natal, eles foram obrigados a usar, diz Lenine Pinto, “trajes civis, em respeito a neutralidade”. Mas mesmo que o projeto tenha sido mantido em segredo, a população de Natal parecia perceber, de acordo com Clyde Smith e com Lenine Pinto, o que estava acontecendo, pelas mudanças que se processavam nas instalações militares da cidade, como a transformação do velho Batalhão de Caçadores num Regimento de Infantaria, a ampliação das Docas e a desapropriação de uma grande área vizinha à Escola de Aprendizes de Marinheiros.
O avanço das tropas do general alemão Rommel acendeu a luz vermelha entre os militares norte-americanos, pois colocou em perigo a navegação no Atlântico Sul, já bem prejudicada desde o início da guerra, comprometendo todo o litoral sul-americano – e principalmente o brasileiro. A partir daí, os Estados Unidos investiram pesadamente para melhorar bases aeronavais no Norte e Nordeste (Belém, Natal e Recife) do Brasil. Câmara Cascudo, em História da Cidade do Natal, discorre sobre a importância do campo de Parnamirim, naquele momento histórico: “O coronel Tavares Guerreiro foi o descobridor de Parnamirim, o padrinho, indicando-o para a finalidade que o tornaria famoso entre todos os campos de pouso do mundo. Desde 1927 em diante descem e sobem em Parnamirim os grandes ases (…), todos os países e tipos de aparelhos. (…) A proximidade da guerra multiplicou as viagens, autoridades, verificações, exames. Parnamirim começou a ser citada porque aí chegavam ministros de Estado, embaixadores, generais, almirantes, jornalistas, industriais, gente de fotografia em jornal e freguesia nos noticiários. 1942 lhe trouxe a consagração universal. A Força Aérea Brasileira instalou sua Base, o primeiro grupo de aviões que partia, policiando os ares, furando horizonte, seguindo os comboios marítimos, num serviço assíduo de cobertura e vigilância. Era a colméia de abelhas valentes, defendendo o mel brasileiro”.
Como diz o historiador norte-americano Thomas Skidmore, a ofensiva militar veio junto com a ofensiva cultural, quando o presidente Franklin Delano Roosevelt encarregou o milionário Nelson Rockefeller de dirigir um escritório cuja função “era promover a melhoria das relações culturais com a América Latina, tendo o Brasil como alvo principal”. Para fazer o trabalho de conquistar a simpatia dos brasileiros e estreitar os laços entre Brasil e Estados Unidos, foram recrutados grandes talentos “para fazerem filmes voltados ao fortalecimento da opinião pró-EUA. (…) Por trás dessas atividades jaziam objetivos de longo prazo dos EUA: sendo um deles o aumento da sua penetração econômica no país. Embora o investimento norte-americano no Brasil já superasse o investimento britânico, investidores norte-americanos ansiavam por novos progressos. (…) A colaboração durante a guerra oferecia uma base excelente para a ofensiva econômica norte-americana posterior”.
Paralelamente ao aumento da presença militar dos Estados Unidos no Nordeste, o governo brasileiro também passou a incrementar o efetivo militar na região, enviando para Natal o almirante Ary Parreiras com a incumbência de construir a Base Naval. A área escolhida foi o Refoles, no bairro do Alecrim, onde funcionava a Escola de Aprendizes de Marinheiro e que, no século XVI foi refúgio de corsários franceses que traficavam pau-brasil, em aliança com os índios potiguares. A Marinha americana, instalada na Rampa, trabalhava harmoniosamente com a Marinha brasileira.
Em julho de 1941, o presidente Vargas autorizou os Estados Unidos a construírem a Base Aérea de Natal. O projeto para a construção de tal empreendimento já estava pronto desde 1940, e a sua execução ficou a cargo da Pan Am. Assim, os norte-americanos, segundo Câmara Cascudo, “construíram do outro lado da Base Aérea Brasileira, perto da lagoa, Parnamirim Field, o campo que mais ajudou a ganhar a guerra”. Além da Base, os Estados Unidos construíram um oleoduto interligando o Campo de Parnamirim às docas do rio Potengi, garantindo assim o abastecimento de combustível para as organizações militares e uma pista asfaltada para facilitar os deslocamentos entre a Base Aérea e a cidade de Natal.
Em meados de 1942, Parnamirim Field era o aeroporto mais movimentado do mundo, “a maior mobilização técnica obtida pelos Estados Unidos fora de seu território” com “pistas de dois mil metros” que facilitavam a descida imediata de 250 aviões. Mil e quinhentos edifícios abrigavam 10.000 homens. (…) A gasolina, média de 100.000 litros diários, vem de um pipe line com 20 quilômetros de distância, recebendo-a dos navios tanques, na cidade do Natal”, ensina Câmara Cascudo. Os soldados e os oficiais dos Estados Unidos foram chegando em Natal aos poucos, “mas sua permanência na cidade, que se estendeu até o final do conflito mundial representou uma série de problemas. Afinal, em um curto intervalo de tempo, de 1941 a 1946, a afluência dos militares e civis norte-americanos coincidiu com o fluxo migratório do interior, devido à seca, para a capital, fazendo dobrar a população da cidade. A conseqüência imediata foi o desencadeamento de uma tremenda crise de abastecimento, acompanhada pelo aumento absurdo nos preços, especialmente no setor imobiliário”, segundo Flávia Pedreira, em sua obra Chiclete eu misturo com banana – Carnaval e cotidiano de guerra em Natal.
Uma passagem, transcrita do Diário de Natal e citada por Flávia Pedreira, atesta o espanto do cronista com invasão estrangeira e com as transformações no cotidiano da cidade. O fato se passou no bairro da Ribeira, um dos mais frequentados pelos norte-americanos. Ali estavam cafés, cabarés, hotéis e restaurantes, lojas, que se constituíam nos principais pontos de diversão para os estrangeiros: “Meio displicente o cronista entrou no café (…) Exclamações joviais, gestos desempenados, tipos de uma outra raça, a que a uniformidade das fardas cáquis emprestava um tom militar, enchiam as mesas. (…) A algaravia que se falava era estranha… Aqui e ali entravam e saíam marinheiros. Sobre a fala de alguns quepes, o brasão de Suas Majestades Britânicas, ou as iniciais simbólicas da RAF canadense. A maioria, porém, era de gente da América, ianques louros do norte, fisionomias enérgicas de sulistas, rostos expansivos e cordiais, do Texas… O cronista olhou para os lados, curioso. Brasileiro, ele apenas. Sim, também as pequenas garçonnettes, numa fardazinha algo esquisita… No entanto, aquele era um simples e muito nortista “café” da rua Dr. Barata, por mais que a paisagem humana se mesclasse de exemplares de terras diferentes… Oh! A guerra…”.
As transformações nos costumes saltavam aos olhos. Enquanto os aviões dos Estados Unidos riscavam os céus de Natal, mudavam os costumes e a fisionomia da população da cidade e do país. Produtos americanos, segundo Skidmore, passaram a ser conhecidos em todo o Brasil e o inglês tornou-se “a terceira língua estrangeira mais falada (depois do francês e do italiano)”. A cidade mudou, em virtude da presença dos norte-americanos: novos hábitos foram adquiridos; Natal tornou-se mundialmente conhecida; sua população sentiu de perto o clima de guerra; houve um aumento da atividade comercial; as pessoas passaram a frequentar cursos de inglês para comunicar-se com os norte-americanos; esportes como o basquetebol e o voleibol difundiram-se pela cidade; irradiou-se a música estrangeira e a utilização de anglicismos; a população praticamente duplicou; a cidade virou trânsito de personalidades internacionais; ocorreu um aumento substancial do custo de vida. Não foram poucas as crianças loiras e de olhos claros que nasceram durante ou logo depois da guerra, fruto de uniões estáveis ou não entre os ianques e as norte rio-grandenses. O número de casamentos entre estrangeiros e brasileiras é bem expressivo e segundo Flávia Pedreira (2005), houve aumento substancial no número de “registros de nomes em línguas estrangeiras e principalmente em inglês”. Mudaram também o vocabulário, o comportamento, as bebidas e o vestuário. Segundo Diógenes da Cunha Lima, em sua obra Natal: biografia de uma cidade, os natalenses abandonaram paletó, gravata e chapéu, começaram a vestir camisa esporte (sileque), aprenderam a ir à praia todos os dias do ano e a se sentar no meio-fio para esperar transporte coletivo, a beber cerveja. Comerciantes fizeram fortuna “vendendo relógios suíços, meias de seda e perfume francês.” Brasileiros e norte-americanos se confraternizavam em Natal e a jogatina corria solta, a ponto de a Vila Cincinato (residência oficial dos governadores/interventores) ter sido “transformada durante a interventoria do General Antônio Fernandes Dantas num mini-cassino”. Outros preferiam amenidades, como saraus musicais, cinemas, prostíbulos, etc, diz Lenine Pinto. De cidade sem vida noturna, que dormia as 21 h, com a “ocupação” norte-americana, Natal passou a ser movimentada, conforme Flávia Pedreira, pela “realização diária de eventos artísticos, culturais e esportivos, muitos deles organizados pelos clubes dos militares norte-americanos, como as famosas reuniões dançantes do USO”.
Depoimento prestado pelo historiador Olavo Medeiros à professora e historiadora Flávia Pedreira diz que os brasileiros adaptaram-se aos costumes norte-americanos sem que estes fossem influenciados. Para ele os norte-americanos “introduziram tomar a cerveja deles, tomas uísque, Coca-Cola e não aprenderam guaraná, não aprenderam coisa nenhuma. (…) A música também, era a deles que imperava, e tinha até um trecho da praia que chamavam Miami Beach”.
As denúncias de quinta-colunismo aumentaram, identificando-se “ações de sabotagem ou espionagem feitas por estrangeiros, como o Hans Werbling e Hernest Lüch, acusados de comunicarem às autoridades alemãs sobre o movimento do porto e de fornecerem informações sobre autoridades e pessoas de projeção que estavam na cidade. Para frear a ação dos quinta-colunas, o comando militar ordenou a prisão do alemão Hernest Lüch e do italiano Guilherme Lettieri, de acordo com Lenine Pinto.
Como Natal estava em possível área de combate, as Forças Armadas promoveram cursos de enfermagem para alguma eventualidade. A Maternidade Januário Cicco (na época Maternidade de Natal) foi transformada em hospital militar, o Hospital Onofre Lopes (na época Miguel Couto) foi reestruturado, a Associação dos Escoteiros fundou o Hospital Luiz Soares (na época Policlínica) e a Cruz Vermelha Internacional por aqui desembarcou, fundando uma filial. A cidade passou por sucessivos blecautes (black-outs) e foram construídos abrigos antiaéreos. Os exercícios de blecautes eram avisados com antecedência à população. Por vezes saíam nos jornais e nos programas da Rádio Educadora de Natal (REN), a primeira de Natal. A recomendação era que, ao toque da sirene que anunciava o início do blecaute, todos deveriam correr em direção a um abrigo antiaéreo. Se não houvesse abrigos nas proximidades, o Comando da 2ª Brigada de Infantaria de Natal determinava que “todos devem permanecer em suas casas”, aponta Flávia Pedreira. João Maria Furtado alega que não havia esse temor entre os mais informados, visto que era conhecido que não havia naquela época aviões com autonomia de voo que permitissem aos alemães, sem bases na África ocidental, atacarem a América do Sul. Para ele, que testemunhou os acontecimentos, “o único perigo concreto que podia ameaçar a cidade seria o seu fustigamento esporádico e rápido com alguns poucos disparos de canhão de um submarino que se arriscasse a essa aventura apenas intimidativa e sem resultados objetivos verdadeiros”.
Em 28 de janeiro de 1943, com a política externa brasileira francamente favorável aos Estados Unidos da América, os presidentes Getúlio Dorneles Vargas e Franklin Delano Roosevelt encontraram-se, de forma sigilosa, em Natal para definir os novos rumos que Brasil e Estados Unidos deveriam seguir, tendo em vista o recuo das tropas alemãs na África e o possível desfecho do conflito, com a derrota do Eixo. O presidente brasileiro chegou com sua comitiva a Natal na noite de 27, atendendo apelo “do Presidente Roosevelt, que manifestava desejo de encontrarem-se para conversar. Retornando de Casablanca (Marrocos), África, Roosevelt chegou a Natal na manhã do dia 28 de janeiro” O sigilo foi tanto, que nem o Comandante da Guarnição Militar do Rio Grande do Norte, gal. Gustavo Cordeiro de Farias, nem o interventor, Rafael Fernandes, tiveram conhecimento prévio do encontro entre os dois presidentes, conforme está registrado em História do Rio Grande do Norte, de Luiz Eduardo Brandão Suassuna e Marlene Mariz. O depoimento de Aldo Fernandes a José de Anchieta Ferreira (Histórias que não estão na História) é ilustrativo: “A chegada de Roosevelt a Natal foi uma surpresa para todo o mundo, não só para as autoridades civis e militares. Certa tarde fui ao Palácio mais cedo, quando chega um oficial, Ajudante de Ordens do General Walsh, americano que comandava a área aqui. Vinha trazer um convite ao Interventor Rafael Fernandes para ir à Rampa, mas para ir só, nem mesmo levasse o seu ajudante de ordens, porque já havia um Ajudante de Ordens americano designado para ficar com ele. Imediatamente telefono a Rafael, que veio ao Palácio e eu contei o fato. Ele tomou o carro e foi para a Rampa e ficamos sem saber nada. Telefonei, então, ao Chefe de Polícia, o coronel André Fernandes e ele me disse que também não sabia de Ada. Deve ser alguma coisa importante para um convite dessa natureza. (…) Dentro de pouco tempo, com ares de espanto, volta o chofer que tinha ido levar o interventor: – Olha Dr. Aldo, chegou lá na Rampa um aleijado, tiraram de um avião, pegaram ele e botaram num Jeep. O Getúlio está lá, o General Cordeiro (Gustavo Cordeiro de Farias), o Almirante Ary Parreiras, um movimento danado, uma segurança, ninguém pode entrar e está tudo guardado. Um pouco mais tarde as minhas filhas me telefonam: – Papai, estamos aqui na Praça Pedro Velho e vimos o Gegê e o Roosevelt passarem em direção a Parnamirim”.
Depois de almoçarem, inspecionarem a Base de Hidroaviões e o Campo de Parnamirim e visitarem, acompanhados do interventor Rafael Fernandes, do almirante Ary Parreiras e do brigadeiro Eduardo Gomes, os Quartéis do Exército e da Aeronáutica, jantaram a bordo do navio Humboldt. No final da noite conversaram sobre os interesses e os laços de amizade entre o Brasil e os Estados Unidos, ações preventivas contra possíveis ataques dirigidos de Dakar (Senegal, África) para o hemisfério ocidental e o apoio do Brasil aos objetivos traçados pelos Estados Unidos. Possivelmente nessa reunião ficou acertada uma participação mais efetiva do Brasil na guerra, inclusive com o envio de um contingente de 25 mil combatentes da Força Expedicionária Brasileira (FEB) para o front.
O dia 6 de junho de 1944 marca o início do fim da guerra. Naquele dia (dia D), os Aliados desembarcaram no norte da França e começaram a desbaratar as forças de defesa alemãs, libertando Paris a 25 de agosto e chegando ao Reno em setembro, de onde penetraram pelo oeste no coração da Alemanha, ao mesmo tempo em que tropas soviéticas faziam o mesmo pelo leste. O final de 1944 tornou a guerra algo remoto para o Brasil. A possibilidade de guerra submarina estava definitivamente afastada, apressando a retirada dos equipamentos militares, bem como algumas trocas de comando, prenunciando o início do fim da presença norte-americana em Natal. No início de 1945 a guerra não havia ainda terminado e contingentes militares norte-americanos foram mandados de volta para os Estados Unidos. Segundo Clyde Smith, empresas de transporte aéreo foram encerrando suas atividades já no segundo semestre de 1944. Somente a Eastern Airlines ficou operando no Atlântico Sul. Com o objetivo de evitar um sério “colapso econômico depois da retirada das forças americanas no período posterior à guerra”, a Junta de Aeronáutica Civil dos Estados Unidos da América indicou Natal como uma importante área na esfera da aviação civil no pós-guerra”. Natal foi escolhida pelas autoridades aeronáuticas norte-americanas “como uma das vinte prováveis rotas aéreas básicas para expansão comercial. As duas rotas nas quais Natal foi especificamente mencionada foram as de Natal-Paris, via Dakar, Casablanca, Tânger e Madri, e Natal-Cidade do Cabo, via Dakar, Monrôvia, Lagos ou Acra, Brazzaville e Johannesburg.”
O último contingente militar dos Estados Unidos deixou Natal, de acordo com Clyde Smith, no dia 26 de novembro de 1946, sendo o último ato do qual participaram a cerimônia de translado dos restos mortais de militares daquele país. Após a partida dos militares norte-americanos, as “bases do Exército e da Marinha americana foram transferidas para o Brasil em outubro de 1946, de acordo com um convênio assinado em 30 de agosto de 1945”.