O folclórico Zé Areia

por Sérgio Trindade foi publicado em 06.ago.20

Acompanhei uma série de textos feitos e divulgados pelo amigo Arthur Dutra nas redes sociais sobre a segunda guerra mundial e mais especificamente sobre o impacto daquele conflito na então pequena cidade de Natal e lembrei-me de um personagem marcante, Zé Areia, figura carimbada de Natal entre os anos 1930-60.

José Antônio Areias Filho, o popular Zé Areia (1900-1972), foi barbeiro, vendedor, biscateiro e principalmente, no feliz perfil feito por Veríssimo de Melo, “humorista nato, improvisador excepcional, satírico e epigramista”, mesmo sendo analfabeto.

De raciocínio rápido e presença de espírito sem igual, Zé Areia tinha verve ferina e levou vida boêmia e completamente despreocupada, quase nunca pensando no amanhã.

Zé Areia no carnaval

A sua vida confunde-se com a de uma Natal provinciana e as suas tiradas fizeram a provinciana Natal rir, e rir muito. Aplicou golpes nos norte-americanos durante a guerra e tripudiou de autoridades, amigos e desconhecidos.

Durante a guerra, Natal, segundo José Nazareno Moreira, no seu Cidade em Black-out: crônicas referentes à Segunda Guerra Mundial, citado por Veríssimo de Melo, “adquiria novos hábitos e modificava rapidamente os seus costumes.” O autor mostra como a pacata cidade, “cujos habitantes ainda botavam as cadeiras na calçada para exercitar a ‘língua de prata’ na maledicência, ou narrar e ouvir histórias sobre ‘burras-de-padre’, ‘papa-figos’, ‘mães d’água’ e sobre lobisomens e o ‘negro melado’ que atemorizavam os adultos e assustavam as mocinhas, passa abruptamente a tratar de frente com o invasor branco, os ‘galegos’ yankees”, levando-a a mergulhar “numa agitação irrefreável (…), tanto na parte restritamente social como doméstica.”

E foi ali, naquele mundo em ebulição, que sacudia a capital do Rio Grande do Norte, que Zé Areia, o nosso Pedro Malasartes, deitou e rolou, ocupando, conforme Veríssimo de Melo, um espaço de imortalidade, um lugar de proeminência que o alçou à condição de vulto dos pouco mais de quatrocentos anos da cidade, construindo algumas das passagens mais hilárias de nossa história

Seguem dez delas. Selecionarei outras em outro momento:

1) Depois de guerra, Zé Areia voltou à velha miséria. Não tinha emprego e vivia de vender qualquer coisa que encontrava.

O chefe de polícia, general Ulisses Cavalcanti, arranjou-lhe emprego de barbeiro, na Casa de Detenção de Natal.

Zé Areia trabalhou alguns dias e logo depois desapareceu e outro barbeiro passou a fazer o serviço dele.

Quando o general Ulisses soube que Zé Areia abandonara o emprego, mandou chamá-lo e quis saber o motivo.

Zé Areia informou:

– Subloquei o emprego.

2) Zé Areia entrou no restaurante de dona Zefinha, no bairro das Rocas, e pediu uma galinha assada.

Foi servido e com fidalguia ofereceu à dona Zefinha um pouco do manjar.  

– Vamos comer uma galinha, dona Zefinha?

– Não gosto de galinha, respondeu mal-humorada a senhora.

– Isso é que é uma classe desunida, devolveu Zé Areia.

3) Um rapaz perguntou, para troçar com o gordo Zé Areia:

– Quantos quilos você pesa, Zé?

A resposta foi maliciosa:

– Você já esqueceu?

4) Um norte-americano veio a Zé Areia reclamar a venda de um papagaio cego.

– My friend, você quer papagaio pra falar ou pra assistir cinema?

5) Zé Areia vendeu uma coruja como uma nova espécie de papagaio e dias depois o norte-americano veio lhe reclamar que o bicho não falava.

Para consolar o incauto comprador, Zé saiu-se com essa:

– Não fala, mas presta uma atenção.

6) Zé Areia procurou José Leandro para alugar uma casa na praia do Meio, que lhe disse:

– A você só alugo com fiador.

Zé Areia procurou o deputado Djalma Marinho, seu amigo do peito, e pediu-lhe uma carta de fiança e foi rapidamente atendido.

Transcorridos noventa dias, Zé não pagou um centavo e José Leandro se queixou a Djalma, o fiador

Certo dia, Djalma encontra-se com ele e reclama, ressentido:

 – Mas Zé, já me telefonaram várias vezes cobrando aquele empréstimo.

E Zé Areia, cínico, com fingida indignação:

– Deputado, compenetre-se e pague. Era só o que me faltava! Pra que eu seleciono tanto meus avalistas? É pra não sofrer decepções como esta!

7) Certa tarde, no Natal Clube, Zé Areia espalhou em várias rodas de conversa que Djalma Marinho lhe devia cinquenta cruzeiros. Ao chegar ao clube, a conversa corria à solta e Djalma estranhou, porque simplesmente não lembrava da dívida.

Ao encontrar o amigo, perguntou:

– Zé, que conversa é essa de que eu lhe devo cinquenta cruzeiros?

– Deve, sim. Eu lhe pedi, naquele dia, cem cruzeiros e você só me deu emprestou cinquenta, lembra?

8) Zé Areia rifava um belo cabresto, com arreios de prata, quando um conhecido e próspero comerciante de Natal resolveu dispensá-lo.

– Eu não compro porque não tenho cavalo. Logo o cabresto não me serve.

Zé Areia rebateu:

 – Serve pra burro também.

9) Zé Areia organizou rifa de um carneiro grande e gordo. Quando foi entregar o prêmio, Luiz de Barros, o vencedor, reclamou do bicho mirrado que recebia:

– Espere, Zé. Não foi este o carneiro que você mostrou ontem.

– É ele, seu Luiz. É que ficou no relento a noite toda. Como choveu muito, o coitadinho encolheu.

10) Num dia de procissão, Zé Areia esperava que a imagem subisse a ladeira para depois “ir tomar umas” e alguém lhe pergunta:

– Zé, vai pedir o que ao santo?

E ele, sem titubear, responde: – Vou pedir ao meu Bom Jesus que transforme minha cruz, toda ela, em cortiça.

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