O mistério e o mundo: a Santa Menina entre o Monte e a Cidade

por Sérgio Trindade foi publicado em 26.nov.25

Está terminando nesta semana o périplo de descida e subida de Nossa Senhora das Graças, em Florânia, momento de profunda religiosidade na terra na qual fui criado e sobre a qual não deixo de falar, escrever e enaltecer. E é impossível escrever sobre o momento sem descrever e analisar o que representa a festa para o município distante 240 quilômetros de Natal.

A devoção à Santa Menina, tal como se manifesta no Monte de Nossa Senhora das Graças, em Florânia, no Seridó potiguar, constitui um daqueles episódios em que a história documentada e a memória popular seguem caminhos paralelos, raramente convergentes, mas ainda assim capazes de construir uma realidade mais sólida e persistente do que qualquer registro em papel.

O sertão nordestino e, mais particularmente Seridó, região marcada por profunda religiosidade, sempre foi terreno fértil para esse tipo de fenômeno em que a fé ilumina fatos, suscita acontecimentos e solidifica a força da tradição que se enraízam nas instituições e no gesto humano, no improviso e na sensibilidade espontânea. O caso da Santa Menina encontra nesse espírito sua explicação mais íntima, pois aqui, como em muitos momentos da história do sertão brasileiro (e não somente o nordestino), o mito não é uma anomalia, mas a própria lógica profunda da vida comunitária.

Os relatos acerca do achado do corpo da Santa Menina remontam ao final da década de 1940. São ecos, fragmentos, versões que os mais velhos contam como se tivessem estado presentes, ou como se os pais e avós lhes tivessem descrito com precisão quase litúrgica. A tradição oral, espinha dorsal desse fenômeno, indica que um frade capuchinho, geralmente identificado como alguém ligado às obras de melhoria ou reforma no alto do Monte, conduzia escavações ou trabalhos simples de terraplenagem quando encontrou o corpo de uma menina. O que chama a atenção, em todos os relatos que circularam, é a descrição minuciosa da suposta incorruptibilidade do corpo, intacto, com traços nítidos e reconhecíveis, como se o tempo tivesse hesitado antes de exercer seu ofício natural. Não há documentação que confirme o episódio, mas, segundo a tradição, o frade teria imediatamente entendido aquilo como um sinal de santidade, ao mesmo tempo em que uma aura de mistério envolvia o achado. O corpo teria sido removido, visto por alguns moradores próximos e, conforme repetido à exaustão pelos devotos, despertado comoção instantânea.

Imagem feita com auxílio de IA

Esse quadro não encontra respaldo em jornais da época. A ausência é, aqui, curiosa. Edições d’A Ordem, principal periódico católico do Rio Grande do Norte na primeira metade do século XX, não trazem qualquer referência direta ao suposto achado, assim como não se encontram registros no Diário do Natal e n’O Poti, que, de acordo com as edições consultadas, noticiava com regularidade eventos religiosos pelo interior do estado. Essa falta de menção, que poderia sugerir a inexistência do fato, serve, ao contrário, para reforçar a natureza profundamente popular do fenômeno. Conforme exposto por Albery Lúcio da Silva em sua Com quantas ave-marias se faz uma santa? Relicário de vozes sobre Santa Menina, dissertação de mestrado apresentada no Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (https://repositorio.ufrn.br/items/a9898b45-dbda-4fa5-84e9-439268e81ef1), referência essencial para compreender o tema, a devoção à Santa Menina nasce e se estrutura inteiramente à margem das instituições formais. Segundo o autor, a santidade da Menina não depende de documento, mas de repetição, de súplica, de promessa cumprida, de voz que ecoa e dá forma a uma presença. E é por isso que o silêncio dos jornais não compromete a fé, muito pelo contrário, legitima o caráter subterrâneo e íntimo daquela crença.

Não é raro, aliás, que elementos fundamentais da religiosidade sertaneja escapem do registro escrito e se preservem unicamente na memória dos fiéis. Câmara Cascudo, ao tratar dos milagreiros, beatos e figuras de devoção espontânea no Nordeste, observa com frequência que “o sertanejo fabrica seus santos”, conforme exposto em seus estudos sobre tradições populares. Fabricar aqui não tem o sentido moderno de invenção arbitrária, mas  de reconhecer, de afirmar por meio da prática cotidiana, aquilo que o mundo oficial não registrou, embora a comunidade experimente como verdadeiro. E em Florânia, de acordo com depoimentos colhidos pelo próprio Albery Lúcio, não é incomum ouvir que encontrar o corpo da Santa Menina foi um desses momentos em que “o céu se inclinou sobre o Monte”. Cada família parece ter sua versão do episódio e todas convergem para o mesmo núcleo: o frade, a escavação, o corpo intacto, o assombro silencioso, o surgimento de uma devoção.

Como em muitos fenômenos semelhantes, a história da Santa Menina rapidamente transcendeu o episódio inicial e se enraizou no Monte de Nossa Senhora das Graças. Ali, o sagrado já tinha morada antiga, afinal o Santuário mariano, desde sua construção, era ponto de romaria e expressão de fé comunitária. Mas o aparecimento da Santa Menina conferiu ao Monte uma dupla centralidade simbólica. A subida, prática comum entre peregrinos desde os primeiros tempos, assumiu desde então um caráter penitencial mais profundo, como se o caminhar rumo ao alto, enfrentando o terreno íngreme e pedregoso, representasse o ato devocional mariano e, também, a busca do encontro com a pureza e a inocência atribuídas à jovem figura sagrada.

Ao observar esse movimento, é difícil não recordar a noção de hierofania elaborada por Mircea Eliade. Para o autor, conforme exposto em seus estudos clássicos sobre religião, uma hierofania não é apenas a aparição do sagrado, mas a transformação de um lugar ordinário em um centro do mundo para aqueles que o reconhecem. O Monte das Graças, que já possuía sua função devocional, torna-se, com a figura da Santa Menina, um espaço ainda mais marcado pela irrupção do sagrado. A cada romaria, a cada ex-voto deixado (fitas, objetos de crianças, fotos, roupas minúsculas, sapatinhos) reforça-se a percepção de que ali algo extraordinário ocorreu e continua a ocorrer, como se o tempo estivesse suspenso e o mistério, sempre disponível para quem sobe o Monte com fé sincera.

A análise antropológica permite ir além da narrativa e compreender por que a figura de uma menina santa encontra tanta ressonância no imaginário sertanejo. Clifford Geertz, ao conceber a religião como sistema cultural, insiste que o sagrado, para produzir efeito, precisa oferecer modelos de experiência e de ação que façam sentido dentro das circunstâncias concretas de uma comunidade. No sertão, lugar de carências, precariedades e incertezas, a criança, símbolo de fragilidade e pureza, converte-se facilmente em ponte entre o humano e o divino. A Santa Menina, por sua vez, surge como intercessora acessível, próxima, alguém que compreende a dureza da vida e ao mesmo tempo carrega a inocência necessária para interceder com eficácia, lógica que aparece claramente nos depoimentos recolhidos por Albery Lúcio, segundo os quais a Santa Menina atenderia sobretudo a mães aflitas, crianças adoecidas, famílias que enfrentam problemas domésticos e, de modo geral, pessoas que buscam uma forma simples e direta de relacionamento com o divino.

A esse respeito, a teoria da liminaridade de Victor Turner ajuda a iluminar o papel do Monte como espaço de transição. Conforme exposto por Turner, experiências religiosas de peregrinação conduzem o fiel a um estado liminar, uma espécie de suspensão momentânea da vida cotidiana em que identidades se diluem e a comunidade se reconhece por meio de símbolos compartilhados. No caso de Florânia, a subida ao Monte cria essa suspensão: o romeiro deixa para trás a cidade, o calor do asfalto, o labor diário e ascende a um espaço simbólico no qual as fronteiras sociais perdem rigidez. É comum, durante as grandes romarias anuais, que estranhos se cumprimentem como velhos amigos, que compartilhem água, passos e esperanças, num breve momento de communitas, esse conceito turneriano que expressa a fraternidade espontânea entre peregrinos.

Se o fenômeno da Santa Menina não encontra registros jornalísticos diretos, encontra, d’outra forma, inúmeras menções no cotidiano da cidade. A oralidade, como indicam estudiosos da memória coletiva, ocupa lugar especial na transmissão de tradições no Nordeste (Ariano Suassuna, Câmara Cascudo, Durval Albuquerque). Maurice Halbwachs sublinha que a memória não existe de forma individual, mas sempre moldada pelas estruturas sociais que a sustentam. É por isso que, em Florânia, o episódio do achado parece tão vividamente presente mesmo para aqueles que nunca conheceram testemunhas diretas da década de 1940. A comunidade organiza e reorganiza seu passado de acordo com as necessidades simbólicas do presente, e a Santa Menina, nesse sentido, funciona como eixo de coesão para a identidade religiosa local.

A ausência de documentos escritos cria, paradoxalmente, uma oportunidade para que a fé se torne ainda mais ativa. Conforme exposto por Durkheim, o sagrado é antes de tudo um fato social. A comunidade é quem define o que é sagrado e o que é profano, logo cabe à coletividade definir o que é ou não digno de veneração. Ao escolher a Santa Menina como figura de devoção, a comunidade afirma sua autonomia diante das instituições formais, sem, contudo, romper com elas. Basta observar que a festa anual no Monte concilia a liturgia mariana, reconhecida oficialmente pela Igreja, com práticas e rituais ligados à Santa Menina, completamente desvinculados de qualquer chancela eclesiástica, um arranjo que alguns poderiam interpretar como sincretismo e que é perfeitamente comum na religiosidade nordestina, especialmente a sertaneja. Não se trata de conflito entre ortodoxia e prática popular, mas de convivência naturalmente estabelecida, na qual cada fiel organiza sua experiência religiosa de acordo com suas próprias necessidades.

É significativo, também, que a figura da Santa Menina tenha surgido no contexto da década de 1940, período marcado no Seridó por intensas mudanças sociais, secas sucessivas e reorganização econômica. De acordo com estudos históricos sobre o período, jornais como A República e Diário de Natal/O Poti frequentemente registravam as dificuldades vividas pela população do interior potiguar, especialmente no tocante ao abastecimento de água, às migrações temporárias e às tensões políticas da época. Não é possível afirmar que o episódio da Santa Menina tenha relação direta com essas circunstâncias, mas é plausível supor que um ambiente carregado de incertezas e dificuldades cotidianas favorecesse a emergência de figuras sagradas capazes de oferecer consolo e esperança. A tradição oral, nesse ponto, cumpre o papel de resposta simbólica à precariedade material.

A cada década, a devoção cresce e os relatos se multiplicam. Segundo depoimentos compilados por Albery Lúcio da Silva, muitos dos milagres atribuídos à Santa Menina envolvem curas, soluções de conflitos familiares, pedidos de proteção para crianças, e até mesmo intervenções em momentos de perigo iminente. A lógica desses relatos obedece a um padrão semelhante ao encontrado em outras devoções populares nordestinas, como aquelas dedicadas a Padre Cícero, à Menina Izildinha ou a Frei Damião. Os fiéis não exigem reconhecimento institucional; o que importa é a experiência direta, o testemunho que confirma a presença da graça. Em muitos casos, a ausência de canonização parece até desejável, pois mantém a santa “próxima do povo”, livre dos ritos formais que, segundo alguns, poderiam “esfriar” a devoção.

Hoje, o Monte de Nossa Senhora das Graças é um espaço em que camadas de tempo se sobrepõem. A presença da Santa Menina confere ao local uma espessura simbólica que ultrapassa, em muito, sua função original. A subida é, para muitos, um rito iniciático, uma passagem necessária para quem deseja alcançar uma graça ou simplesmente renovar a fé. O Santuário, com suas imagens, velas, ex-votos e pequenos bilhetes deixados discretamente nos cantos, compõe um ambiente de intensa experiência sensorial e espiritual. Ali, o silêncio e o vento que atravessa o alto da serra são percebidos como sinais da presença do sagrado, e não é raro que os romeiros, ao chegarem ao topo, digam sentir “uma paz diferente”, expressão comum nos relatos devocionais coletados na região.

O mito, longe de se esgotar, parece ganhar força com o tempo. A cada nova geração, surgem narradores da história da Santa Menina, muitas vezes com pequenas variações, mas sempre preservando o núcleo que dá sentido ao fenômeno. Conforme exposto por Geertz, a eficácia simbólica de uma narrativa não depende de sua precisão factual, mas de sua capacidade de fornecer ao fiel um quadro inteligível para interpretar sua própria vida. A Santa Menina, nesse aspecto, oferece um modelo de intercessão profundamente afetivo: a jovem que sofreu em silêncio, que permaneceu intacta, que foi encontrada por acaso, que se manifesta por meio de milagres discretos, quase domésticos, atende às expectativas espirituais de uma população acostumada a lidar com o sofrimento cotidiano.

Se a história oficial não registrou o achado do corpo em meados do século XX, a memória popular o fixou com a firmeza de quem reconhece no episódio algo essencial para sua própria identidade. E é justamente nessa ausência de documentação que reside a força da fé. A tradição oral, alimentada por narrativas de vizinhos, parentes e romeiros, funciona como um reservatório inesgotável de significações. Conforme exposto por pesquisadores da memória coletiva, o que importa não é a fidelidade literal dos relatos, mas a consistência simbólica que eles oferecem à comunidade. E Florânia, ao longo das décadas, encontrou na Santa Menina uma guardiã silenciosa, cuja presença no imaginário local parece tão real e concreta quanto qualquer personagem registrada oficialmente pela Igreja.

Assim, o fenômeno da Santa Menina não deve ser compreendido como uma excentricidade isolada, mas como parte de um movimento maior da religiosidade nordestina: a busca por intermediários divinos que compreendam a vida dura do sertanejo e se façam presentes nos pequenos dramas cotidianos. A devoção, sustentada por uma memória que atravessa gerações, reafirma que, no Seridó, o sagrado não nasce nos gabinetes episcopais, mas no chão quente das casas, nas conversas em torno da mesa, nas promessas murmuradas antes de dormir. Ao Monte das Graças, os romeiros sobem não apenas para agradecer ou pedir, mas para reencontrar a si mesmos, resgatando a convicção profunda de que o mistério continua habitando entre eles. Por isso, a Santa Menina permanece como um desses raros fenômenos em que a comunidade se reconhece e se constitui. Sua história, ainda que envolta em névoas e lacunas documentais, é uma maneira de afirmar que o sagrado, no sertão, não se impõe – irrompe. E ao irromper, organiza o mundo, dá sentido à vida comum, estabelece laços e convida os fiéis a participar de algo que transcende o visível. Como sugere a tradição oral, preservada nos relatos e nos ex-votos que continuam a se acumular no alto do Monte, a Santa Menina é lembrada – e experimentada. E enquanto houver quem suba o Monte com fé sincera, sua presença continuará viva, movendo, unindo e dando forma ao imaginário religioso que sustenta a comunidade de Florânia há tantas décadas.

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