O gesto solitário de Adolfo Suárez
Em 2016, o professor de Filosofia Luiz Roberto, com quem trabalhei no IFRN – campus Natal Zona Norte, falou-me de um livro que andara lendo e que contava a história do fracassado golpe de Estado na Espanha, em 1981. Manifestei certo interesse, porquanto a situação política que o Brasil vivia, com a presidente Dilma recentemente impedida por meios legais, com processo de impeachment conduzido no Congresso Nacional e com a militância gritando “Golpe! Golpe” nas ruas.
Sempre me interessou muito o tema golpe de Estado e, para tentar entender o que ocorria no Brasil e tentar identificar se havia raízes golpistas na queda de Dilma, li, entre 2016 e 2017, O impeachment de Fernando Collor: sociologia de uma crise, de Brasílio Sallum Junior, Mil dias de solidão: Collor bateu e levou, de Cláudio Humberto, Notícias do Planalto, de Mário Sérgio Conti, O impeachment de Dilma Rousseff: crônicas de uma queda anunciada, de Luiz Carlos Azedo, muita coisa sobre o autogolpe de Vargas, em 1937, sobre a deposição de Jango, em 1964, e sobre a decretação do AI-5, em 1968, entre outros e fui adiando a sugestão de Luiz Roberto, até que assisti à primeira temporada (nem sei se haverá outras) da série El Rey, que se encerra praticamente no momento em que o rei Juan Carlos escolhe Adolfo Suárez González (1932-2014) para presidir o governo espanhol.
A Espanha, que se livrara do generalíssimo Francisco Franco, que governara o país com mão-de-ferro por quase quatro décadas e morrera em novembro de 1975, construía os pilares do regime democrático. Qualquer movimento político mais brusco poderia significar um retrocesso, com a volta do franquismo, ainda não totalmente sepultado. A moderação e a sabedoria deveriam ser os ingredientes para evitar o colapso da jovem democracia. E foi justamente em 1981 que Adolfo Suárez, falecido em 2014, protagonizou um dos momentos mais dramáticos da história recente da Espanha, como descreve de forma brilhante o escritor Javier Cercas, autor de Anatomia de um Instante, livro que trata do assunto.
Adolfo Suárez, formado em Direito, foi estudante relapso, e ascendeu na política com muita sorte e sagacidade. Era, de acordo com Javier Cercas, “o protótipo perfeito do arrivista que a corrupção generalizada do franquismo criou”. Nem fama de homem público correto tinha. Político medíocre cevado nas entranhas do franquismo, foi nomeado, em 1976, presidente de governo (função que corresponde ao cargo de primeiro-ministro) pelo rei Juan Carlos. Nada na vida do novo chefe de governo indicava que estaria preparado para desempenhar a espinhosa missão que tinha pela frente: conduzir a transição da ditadura para a democracia.
O rei Juan Carlos pretendia lançar as bases da democracia na Espanha e a escolha de Adolfo Suárez, desde sempre ligado ao franquismo, pareceu a todos infeliz. A desconfiança foi geral, dadas as raízes do passado ditatorial do escolhido. O seu gesto, quando um grupo de tresloucados liberticidas invadiu o Parlamento, começou a atirar a esmo e ordenou aos deputados que se deitassem no chão, de permanecer sentado, “sozinho, estatuário e espectral”, como diz Javier Cercas, enquanto os parlamentares escondiam-se atrás das bancadas, é grandioso, corajoso altivo e célebre, garante a sobrevivência e a consolidação da democracia e põe o ex-franquista convertido à democracia entre os baluartes da democratização do país ibérico.
Adolfo Suárez comprou a proposta de defender a democracia com tanta força que pôs em risco, solitariamente, a própria vida, quando as balas cortavam o ar do plenário do Parlamento. Justificou o seu ato dizendo que “um presidente de governo não deve nunca deitar-se ao chão”, demonstrando que gestos eternos brotam quando e de quem menos se espera.
Para utilizar a terminologia de Hans Magnus Enzenberger, ex-presidente do governo espanhol é um herói de retirada, aquele que “não é só um herói político”, mas “também um herói moral”. pois, para surpresa de todos, inclusive dos mais ferrenhos adversários, e arriscando a própria vida empunhou a bandeira democrata e, com valentia, habilidade e sagacidade, conduziu a nau a um porto seguro.