Política no Olimpo

por Sérgio Trindade foi publicado em 21.set.21

O texto que segue foi escrito pelo colega e amigo Luiz Roberto, professor de Filosofia no IFRN-campus Natal Zona Norte.

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Sou daqueles que pensa ser o retorno ao passado, à memória, à história, um recurso fundamental para compreendermos nossa realidade atual, bem como possíveis desdobramentos para o futuro.

Somos nosso passado. Se levarmos em conta exclusivamente a perspectiva do indivíduo, isso é tão evidente que, a priori, não enxergo possibilidade de existirem discordâncias quanto a esta afirmação, nem vejo que sejam necessárias maiores explicações. Como o ex-poeta já proferiu: “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é…”. Cada qual conhece sua história pessoal, impressa na própria carne. Mas ainda mais acentuada que a nossa história enquanto indivíduos, cheios de razões, emoções e decisões, é a nossa história enquanto cultura, enquanto civilização. Nossa história coletiva e humana.

As influências disso que estou chamando de História Cultural, sobre a história de cada um de nós, são acachapantes, muitas vezes indecifráveis e, sem dúvida alguma, inexpugnáveis. Não existe possibilidade de fugirmos de nosso passado. E, pior, ainda que representem um peso em tudo aquilo que somos, pensamos e fazemos, nós não conseguimos reconhecer o débito que temos com a história. Este tributo é praticamente insolúvel. Não pagamos a dívida que recebemos. Nossa visão amesquinhada da vida, invariavelmente pautada pela busca incessante do prazer e da felicidade individual, oblitera nossa compreensão e dimensionamento da carga que recebemos. Por isso, justamente por isso, descuidamos do nosso passado civilizacional. E certamente penhoramos nossa história. Estou falando assim para entender, também, que os grandes luminares da história da humanidade marcam o compasso da nossa visão de mundo. Como outros já disseram, e eu apenas plagio aqui: “Somos anões nos ombros de gigantes.”

Estes gigantes, quando nos põem na altura de seus ombros, de forma que possamos lançar para o horizonte uma mirada panorâmica sobre o mundo, e para nós mesmos; terminam contribuindo para que, às vezes, assustemo-nos, correndo o risco até de sucumbir com a visão daquilo que não estamos acostumados.

Todo esse imbróglio é para dizer que dia desses estava lembrando do diálogo platônico intitulado Protágoras. Pois é. Tive a audácia de “subir nos ombros” de Platão. Essa escalada, é importante frisar, foi mal realizada, cheia de tropeços e atropelos.

Mas, voltando ao Protágoras, tenho a dizer que não estava matutando sobre a inteireza da obra, e sim da parte em que é mencionado uma singular proposição do mito de Prometeu. Neste desdobramento do mito original – o qual estava presente, salvo engano, em Hesíodo – o que é apresentado não é mais o trabalho de criar os homens, responsabilidade dos irmãos titãs Epimeteu e Prometeu, respectivamente: aquele que só pensa depois de agir, e aquele que pensa antes de agir.

Segundo a versão platônica, aos dois titãs, ou melhor, a Epimeteu, coube a tarefa de distribuição dos meios de sobrevivência para todos os seres, dotando uns com velocidade, outros com força, outros com a capacidade de voar, e assim por diante. Distribuiram-se os meios necessários para a sobrevivência de todas as espécies. Sempre no intuito de que não houvesse mútua destruição de nenhuma delas. Foi fazendo isso e, uma vez que Epimeteu, como vimos, não era afeito à predição das consequências, ao final, quando examinou o resultado de sua empreitada, percebeu que não restava nada a conceder à raça dos homens. Ficando estes nus, desabrigados, sem meios de sobrevivência própria. Foi aí, então, que interveio Prometeu, seu irmão, roubando o fogo e a sabedoria técnica dos deuses para dar aos mortais.

Segundo a narrativa mitológica platônica, Prometeu teria usurpado tais habilidades da deusa Atenas e do deus Hefestos. Em tendo ocorrido isso, os homens passaram a ser as únicas criaturas com participação nas coisas divinas, justamente por conta do parentesco urgido inadvertidamente pelo titã, ao conceder a humanidade dons próprios dos deuses Olímpicos.

Contudo, tais habilidades, que representariam a cultura e as técnicas, por si só, ainda não seriam o suficiente para que os seres humanos conseguissem prosperar e sobreviver. Os humanos falavam, construíam, plantavam e tudo o mais. Apesar disso, não conseguiam viver em sociedade, nem ao menos se defender das feras. Fazer com que os homens conseguissem conviver minimamente em paz e se defender eram, sem dúvida, um artificio de natureza mais majestosa. Só possuída pelo rei dos deuses, Zeus. E é aquilo que denominamos de arte da política.

O próprio Zeus, temendo que a raça dos homens decaísse e fosse destruída, teria concedido tal beneplácito aos homens. Atribuindo ao mensageiro dos deuses, Hermes, a obrigação de levar a política aos humanos. Mas entendamos que distintamente das outras artes, como, por exemplo, a do sapateiro, que pode servir a muitas outras pessoas, não sendo necessário, de forma alguma, que todos saibam consertar e fazer calçados. E assim, estendendo o raciocínio à medicina, à agricultura, à construção e todas as outras artes. Com a política a coisa fica um pouco diferente, sendo, portanto, a mais alta concessão feita aos seres humanos.

É importante que se pluralize questão. A política não poderia ser o artifício de um, ou de um grupo. Ela não pode ser possessão de uns poucos. Todos devem usufruir igualmente do domínio da política. Sob o peso de, em caso contrário, a convivência não ser alcançada e a defesa não conseguir ser realizada a contento.

A própria narrativa mitológica expõe que a política não é um todo homogêneo. Ela contempla a arte da beligerância – devemos conseguir nos defender –, da justiça e do senso moral, inclua-se aí os valores de toda estirpe. Portanto, percebamos que a política, sob a ótica de Platão, é responsável por qualquer circunstância civilizacional da nossa vida. Não podemos nos esconder da política. Só existimos em sociedade por conta da política.

Em tempos nos quais se observa a criminalização de toda contestação a quaisquer, supostas, ideias majoritárias e a possíveis consensos, quando, acima de tudo, pretende-se criar a recorrência a iluminados como justiceiros das discussões políticas e do debate público, não devemos esquecer que a extirpação daquilo que não me soa agradável, por não ter recebido o carimbo de aceitável da galerinha do selo azul, é tudo, menos política.

Ou melhor, é a anti-política e, portanto, totalitarismo.

É oportuno notar o dissenso, ou a polarização, como um fruto mal-parido do ambiente político. Seria estranho que não o fosse. Porque talvez os sábios gregos já estivessem tentando mostrar que na política não existe espaço para a construção de projetos arquitetônicos que vislumbrassem a perfeição. Aquilo que supostamente idealizamos em termos de projetos perfeccionistas, jamais pode ter lugar em um mundo onde a política não é uma técnica específica, racional e dogmática, para erigir reinos dos sonhos, presentes apenas nos contos-de-fada.

A política é muito mais próxima a um equilíbrio a ser constantemente restabelecido. Que mexe com emoções, com afetividade, com a conservação de valores e costumes, com o reconhecimento e com a convivência dos diferentes, ainda que a uma distância prudencial. A política mexe com a mudança e adequação, sem rupturas alicerçadas em ficções. Portanto, assim como sou obrigado a ouvir canções que desagradam meus ouvidos, deixem que a política possa ser também causadora de dissabores. A vida também é composta por estes. Eles não nos extinguem a vitalidade. Apenas nos estimulam a melhorar.

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