Dona Lecinha, a doce matriarca

por Sérgio Trindade foi publicado em 13.jun.21

Ninguém duvida do amor de mãe. Especialmente daquela que traz consigo a essência do ser mãe.

O nome de cartório de minha mãe, nascida em 1929, era Luiza Bezerra, mas foi, vejam que doce e terno, amada e querida como Lecinha, apelido de infância que carregou por quase noventa anos.

Filha dos primos carnais Joaquim Bezerra e Luiza Bezerra, acrescentou Trindade quando contraiu núpcias com José Veras Trindade, em 1959.

Viveu a vida para a família. Foi uma mulher de aparência frágil mas uma fortaleza em todos os sentidos, principalmente no que se refere à retidão de caráter e princípios, os quais sempre nos apontou – a mim e à minha irmã, Maria Luiza (a quem chamo carinhosamente de Neném).

Diferentemente de papai, que adorava uma polêmica e uma boa briga (saí a ele neste quesito), mamãe foi da paz. No entanto, não aceitava que lhe pisassem os calos.

Falecida no último 11 de maio, a data ficará para sempre marcada na minha memória como uma das mais tristes e dolorosas que vivi.

Perder a mãe, ainda mais uma como foi a minha, presente em cada momento e preocupada vinte e quatro horas por dia com o bem-estar da família, é doloroso como nunca imaginei. Dói na alma e o corpo sente a fuga das forças.

Todo mundo parece saber lidar com a dor, exceto aquele que a sente, porque para ele, ela é real e não uma ideia sobre a qual um outro fala e teoriza. Para citar Sêneca, o estóico filósofo romano, as dores ligeiras se exprimem, enquanto as grandes dores manifestam-se caladas. Corroem silenciosamente as forças de quem as sente.

Amigos estiveram preocupados comigo neste último mês, quando passei a postar quase que diariamente lembranças de mamãe. Temiam que eu fosse envolto num torvelinho de tristeza e fosse tragado pela depressão. Garanto, não há o menor risco.

Sei perfeitamente que a vida é abreviada a cada dia que vivemos e que a morte é determinação de que o tempo comprou apenas passagem de ida. Por isso a saudade é feita de lembranças.

A saudade é um sentimento doído. Dói como se fosse uma dor física e talvez seja ainda mais dolorosa porque dói na alma. Talvez ela exista para aliviar a alma, trazendo-nos momentos vividos e, se temos de com ela conviver, que sigamos, pois, como cantou Peninha, tê-la é “melhor do que caminhar vazio”.

A tristeza extrema que me envolve é de outra natureza. É constituída por tijolos que, postos lado a lado, hão de se transformar numa fortaleza inexpugnável de saudade. E será ela, a saudade, que nunca me – e ouso falar por minha irmã – abandonará,  preenchendo momentos de minha (nossas) vida(s) daqui em diante, até o dia em que também expire(mos).

Mamãe frequentou pouco os bancos escolares, como era comum na sua época. Católica, nunca foi presença constante em celebrações religiosas. Extremamente forte e um tanto sozinha sem ser solitária, viveu, entre 1959, quando casou, até 1983, quando ficou viúva, como as mães de antigamente, em função dos filhos e de um homem, meu querido pai. Viúva, viveu para os dois filhos, com os quais nunca deixou de se preocupar e sobre os quais sempre manteve a autoridade.

Quando papai faleceu, mamãe, com a calma e o espírito de organização dos grandes, apertou o torniquete dos gastos e rapidamente pôs ordem nas finanças da casa, fazendo trabalhos de tricô e crochê para complementar o orçamento doméstico. Extremamente rápida no raciocínio matemático, nunca precisou de calculadora para fazer contas. Depois de tudo organizado, partiu para satisfazer os desejos meu e de Neném. Estes momentos me marcaram profundamente e contribuíram demais para que eu tivesse o zelo que tenho com o que ganho.

A rede foi uma companheira fiel em todos os momentos. Nela planejou a vida que foi possível – e o fez com eficiência assombrosa.

Casada minha irmã, em 1986, e uma década e meia depois eu, mamãe ficou sozinha (por mais uma década Elvira Pereira morou lá em casa) sem ser solitária, pois estava sempre cercada por pessoas – e não eram poucas – que lhe queriam bem. Quase nunca se preocupou com as diversões da vida. Viveu só, com a presença constante dos filhos e dos netos e relativamente frequente dos sobrinhos e dos irmãos, de outros familiares e de amigas e vizinhas.

Gestos suaves e traços finos, muito bonita na juventude e com alguma vaidade, sua maior diversão na vida era estar cercada por gente da família, em Natal ou no interior, Upanema e Florânia. Em Upanema, passava horas jogando sueca com filhos, primos, irmãos e sobrinhos, vivendo num tempo e espaço que eram só seus. Ali, visitando primos e passeando por espaços da infância e adolescência, ficava numa felicidade contagiante e revigorante.

Sei que sou um herdeiro direto da sua solidão não solitária. Nenhuma pessoa me foi mais querida. Sua simplicidade quase espartana me comoveu ao longo de sua longa existência nonagenária.

Provavelmente o mundo seja belo por ser simples, como demonstram as leis da natureza, e o que há de misterioso seja apenas criação das pessoas. A sabedoria de mamãe foi, certamente, entender, sem afetação alguma, que a natureza é sábia por exalar sem ostentação a pureza e a beleza que tem.

Perspicaz, mamãe sabia ler nos nossos olhos e nos nossos gestos quando estávamos insatisfeitos. Sabia perfeitamente quando não estávamos bem e para minorar nossas angústias nos presenteava com coisas simples e frugais, que tocavam o fundo da alma, demonstrando que o todo não pode, para garantir a felicidade, ser separado em partes.

Sou parte de minha mãe e não estava feliz vendo que a evolução de problemas de saúde dela poderiam fazê-la sofrer. Não suportaria vê-la sofrendo numa cama de hospital, o lugar da solidão por excelência, pois a solidão que mamãe nutriu não se adequava à solidão sofrida do leito hospitalar que suga e deixa a todos exangues. A solidão de mamãe era a solidão para amar, não para sofrer; e a natureza, simples e sábia, abreviou alguns instantes da vida de dona Lecinha, para que ela não fosse supliciada pela dor e pudesse deixar a todos que amava na tranquilidade e paz que soube transmitir em vida.

E assim ela partiu, sem sofrimento, há um mês. Para uma viagem sem volta. E assim nós ficamos, doloridos, esperando que a dor seja, um dia, apenas saudade e que esta, em rodopios, restitua-nos a esperança de poder abraçar dona Lecinha novamente.

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