Lembranças de 2004

Estava fazendo uma faxina no meu notebook quando me deparei com uns textos antigos, entre os quais uma série de discursos que proferi, como paraninfo, das turmas de pré-vestibular do hoje Complexo Educacional Noilde Ramalho, à época Complexo Educacional Henrique Castriciano e Escola Doméstica de de Natal. Fui paraninfo, pela primeira vez, das turmas do  Complexo Educacional Henrique Castriciano e patrono das da Escola Doméstica de Natal. O evento ocorreu no dia  17 de dezembro de 2004.

Segue o discurso, uma boa lembrança que preservarei, exatamente como está guardado, com a ortografia da época:

Difícil é, para mim, traduzir em palavras o que sinto e o que penso neste momento.

Uma escola não se faz somente com tijolos, pedras e cimento. Não é só construção material, é, acima de tudo, consolidação espiritual. E é disso que gostaria de falar nesta noite.

À frente de vocês repousa em paredes uma história de noventa anos. Berço do Complexo Educacional Henrique Castriciano, a Escola Doméstica completou nove décadas de vida. Uma nonagenária menina, nascida nos baixios da Ribeira no primeiro quartel do século XX, sob os auspícios do grande Henrique Castriciano, e trazida para uma fronteira da pequena Natal em meados do mesmo século por quem a dirige desde então, a educadora Noilde Ramalho.

Henrique Castriciano e Noilde Ramalho representam a síntese do que são todo o Complexo Educacional formado pelo HC – ED – FARN. Um, doutor Henrique, é a idéia; dona Noilde é a concretização; doutor Henrique é o homem letrado, mestre e tutor intelectual de Câmara Cascudo, um dos maiores homens de letras do Brasil; dona Noilde é a intuitiva que sempre soube perceber a direção dos ventos para melhor manobrar a nau por mares agitados. Ele é a reflexão demorada; ela é o lampejo certeiro. Ambos, nascidos distantes no tempo, aproximaram-se para, através de suas realizações, construírem um império educacional que enobrece a nossa cidade.

Felizes são vocês porque puderam banhar suas esperanças e renovar suas aspirações no alvorecer deste dia, finalização de uma vida escolar, em que, mais uma vez, estas casas de educação formam mais uma turma que deitou raízes no seu chão distinto.

Vocês não podem esquecer, hoje, que são herdeiros e construtores de uma história, aqui iniciada há alguns bons anos. Uma década, um lustro, um ano… não importa. Uma história não se faz apenas de números que delimitam espaços de tempo. A história se faz de momentos, de vivências, de afetos, de brigas, por isso não pode ser quantificada. Não se mede o que foi feito por doutor Henrique Castriciano e dona Noilde Ramalho em anos, décadas, séculos. O que ambos construíram vale mais pela qualidade que pela quantidade. As vivências ocorrem dentro de um espaço de tempo, num átimo ou num século. Um século sem realizações é uma infinidade de vida, mas um nada de lembrança; um átimo de realização é uma vida de recordações.

Já que ao final haveremos sempre de resgatar coisas importantes ou até sem significado aparente, momentos fugazes… por que não lembrar?… já que vocês estão se despedindo, mas certamente voltarão ao seio acolhedor desta casa; por que não lembrar?… já que esta casa está tão presente na vida de vocês, talvez só menos presente que o lar construído com os seus pais; por que não lembrar?… já que vocês conhecem cada pedacinho desses recantos e reentrâncias das paredes, dos bancos, das portas e da natureza exuberante que circunda o HC e a ED; já que a emoção que vos dominam no momento da despedida ameaça transbordar, e nenhum dique seria capaz de conter os vagalhões de júbilo e angústia, de alegria e tristeza, que se formam em seu interior, meus queridos alunos e alunas, permitam-me despir-me da roupagem vistosa e transitória de paraninfo / patrono, com que vocês me honraram, para falar na condição de professor que os viu crescer, de garotinhos e garotinhas de 5^a série a adolescentes de Pré-Vestibular. Crianças recém saídas dos cueiros, quando nos encontramos pela primeira vez, havia na grande extensão curiosa e protetora de suas personalidades apenas o silêncio e a natureza inviolada. Senti-me frente a um sertão bravio e ignoto. Mas foi nesse sertão feroz de perfis multifacetados que foram se multiplicando os momentos felizes: nas viagens de campo, nas torcidas organizadas dos Jern’s [e o indefectível Netiguês (mistura de Neto com português) Quem são vocês?, e a resposta pronta, na ponta da língua: HC, HC] nos debates de sala de aula [poucos, infelizmente, invariavelmente interrompidos por algum (a)  mais “interessado (a)” que levantava a mão e sacava a original pergunta (sempre muito associada ao assunto visto): posso ir ao banheiro? Ou a ainda mais original, originalíssima, posso ir beber água?]; nas descobertas do outro, nos namoros, nos beijos furtivos, trocados por Felipe Rocha e suas fãs (uma única e verdadeira paixão de avenida); na lição, honrada e enobrecedora, protagonizada por Bruno Henrique que, majestosamente, após um fracasso, soube erguer a cabeça e, de forma impoluta e altaneira, mesmo de ânimo abatido, não deixou que se abatessem os ânimos dos colegas. Que bela lição!

Mas não olhemos apenas para o passado. A data de hoje é, presentemente, uma das maiores, até o momento, de suas vidas, por várias razões, qual a qual per se é bastante para lhe conferir esta supremacia. Ela recorda uma insigne honra conferida àqueles, entre nós, que buscam no esforço e na superação a subida degrau a degrau rumo à vitória. Ela exprime uma esplêndida conquista da consciência popular: a travessia, institucional, no nível do conhecimento. Ela rasga ao futuro de vocês o pórtico gigantesco por onde hão de passar a construção e o desenvolvimento de nossa cidade, do nosso estado e do nosso país.

Não esqueçam: a escola deu-lhes os princípios norteadores de homens e mulheres vencedores, mas o estofo de vencedor tem de ser construído por cada um de vocês. Sejam homens e mulheres de idéias e de ação. Essas especificidades são importantes. Mas por si não bastam. Elas devem vir seguidas de virtudes igualmente importantes, a saber, a integridade, a honradez suprema, a sinceridade absoluta. Chico Buarque de Holanda cantou, de maneira jocosa, “mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas”. Eu, na minha humildade de um poetastro, pediria para vocês mirarem no exemplo dado por um certo colega de turma “C”, grande goleiro de handebol (ainda que tome uns franguinhos).

Num mundo como o nosso, a responsabilidade social torna-se cada vez mais importante. Certa vez, nos idos de 1963, discursando no Lincoln Memorial, o líder negro Luther King, mártir da luta contra a segregação racial nos Estados Unidos, disse:

“Eu tenho um sonho!

Eu tenho um sonho no qual um dia esta nação se erguerá e viverá o verdadeiro princípio do seu credo: Nós acreditamos que esta verdade é auto-evidente, que todos os homens são criados iguais.”

Muito se tem dito que os jovens de hoje são alienados e despolitizados. A formulação é indutivamente fraca. Albert Camus, escritor franco-argelino, em discurso proferido por ocasião do recebimento do Nobel de Literatura, em 1957, levantou a seguinte questão:

“Todas as gerações, sem dúvida, se julgam fadadas para refazer o mundo. A minha sabe, no entanto, que não poderá refazê-lo. Mas a sua tarefa é talvez maior. Consiste ela em impedir que o mundo se desfaça.”

O grande escritor – e sua geração – estava estupefato com o perigo de uma hecatombe nuclear. Ele e outros não menos famosos – Einstein, Chaplin, etc – lutavam pela paz, denunciavam a guerra e os ditadores de opereta. Foi dessa forma que aquela geração fez história.

Rubem Alves, em texto elegantemente construído, defende a tese que a separação entre a atual geração de adolescentes e aquela da qual fez parte são as batalhas travadas, e estas “variam segundo o momento histórico em que se vive.”

Por vezes um polígrafo vazio, Rubem Alves acertou na mosca. O que falta a vocês são ideais, batalhas a travar, sonho… devaneios… utopias.

Sonhem! Criem as suas batalhas! Lutem contra moinhos de vento, como D. Quixote. Tentem derrubar a tirania, como fez a geração dos anos 1960. Sempre existe uma tirania a ser derrubada. Procurem-na. Façam a história de vocês. Escrevam-na com tintas fortes, construam uma Pátria coesa e dignificadora.

A Pátria, meus jovens, não é o passado, mas o futuro que construímos com o presente, é tarefa a cumprir, é a promoção da justiça, é movimento. Sempre está por ser construída.

Creio que um exemplo a ser seguido do que deve ser buscar a construção de sonhos foi dado por colegas de vocês, integrantes das Academias de Letras do Henrique Castriciano e da Escola Doméstica de Natal. Não gosto muito de clichês, mas vou recorrer a um, originalíssimo: as escolas, ED-HC, estão mais pobres hoje; as Academias perderam uma boa porção, como se tivessem cortado a carne. Vão-se:

1) o talento insofismável de Lília Luz, moça bonita, de fina ironia, espírito crítico aguçado, como convém a um livre-pensador, coisa que ela, sem dúvida, será; contagiante no palco, pequeno para comportar toda a sua vivacidade; nas exibições da Academia, o público a ela se rendeu.

2) a elegância discreta de Jetro, nome bíblico e épico, como conviria a esse jovem dinâmico, talento múltiplo, leitor voraz, inteligência rara. A sua postura cavalheiresca reforça a marca do seu caráter.

3) a timidez de Diego Silveira, constantemente superada a cada apresentação. Diego, rapaz meigo, pequeno no tamanho, imenso no coração, mostrou que a inibição não pode ser, não deve ser e não é barreira intransponível.

4) a líder vitalícia de todas as turmas que freqüentou, Beatriz Soares, simplesmente Bia, doce, atenciosa, responsável e, no palco, uma revelação: personalidade forte e decidida, sem abrir mão da doçura.

5) a graça de Janaína França, terna, desligada a ponto de esquecer o nome, mas nunca de esquecer o texto. Linda a ponto de conquistar todos os corações, e desligada a ponto de não notar uma declaração de amor. Mas firme, senhora da situação quando esta o exige.

6) a discrição de Olga Caroline que, apesar de ter se despedido antes, devido à preocupação com o vestibular, de forma sorrateira buscou um espaço e se revelou liderança, confirmada na escolha de suas companheiras para presidir a Academia de Letras da ED.

Estou chegando ao fim e, nesta altura, talvez fugindo à praxe, exorto-os ao cumprimento de um dever. Falar em dever seria insistir no óbvio. Por isso direi apenas o seguinte: empreguem o conhecimento da melhor maneira possível, livremente, corretamente, em favor do próximo, em benefício da coletividade, em proveito do povo e da nação a que pertencemos. Lutem contra a opressão; uma opressão real, não imaginária. Uma opressão lastreada na pobreza e na falta de dignidade humana. O que vocês devem reclamar não é contra o fato de que muitos são pobres e poucos ricos. Não há como derrubar essa ordem de coisas. O mundo sempre foi assim. E mesmo aqueles que construíram uma “nova ordem” na falecida União Soviética, construíram-na ainda mais opressora e sem abolir privilégios. O fenomenal Nelson Mandela, ativista negro na África do Sul, quando ser ativista e ainda por cima negro era correr perigo de morte, sentenciou que para abolir a pobreza “não precisamos de comunistas nem de vulgos agitadores”. Então, se a construção real do socialismo falhou, revelou-se utópica, como diminuir as desigualdades? A educação formal talvez ainda seja a maneira mais eficaz de abolir as disparidades sociais. Lutem para que muitos mais tenham a oportunidade que os seus pais ofertaram a vocês. Mais: aproveitem, vocês mesmos, essa oportunidade.

Isso é tudo que eu – e creio, falar em nome dos professores – espero de vocês.

Muito obrigado!

Sérgio Luiz Bezerra Trindade