Tratado de Economia Monetária, de Helton Edi

por Sérgio Trindade foi publicado em 07.set.25

No Brasil, país onde até a tragédia tem vocação para pastelão, o secretário de Administração Penitenciária do Rio Grande do Norte, Helton Edi Xavier, decidiu abrir a boca. E quando ele abriu, não saiu liturgia, nem decoro, nem aquelas frases ocas que os políticos colecionam como figurinhas de Copa do Mundo. Saiu a verdade mais escatológica do nosso tempo: “Só existem duas moedas de troca na cadeia: cigarros e o cu. Bolsonaro não fuma.”

Eis aí a síntese do Brasil, o país onde até o sistema prisional cabe em uma piada de botequim. Não falamos de ressocialização, de direitos humanos, de disciplina carcerária. Não! Falamos de cigarros e orifícios. Helton, num arroubo de sinceridade imprópria, conseguiu fazer em uma frase aquilo que o Congresso Nacional não faz em quatro anos: revelar o Brasil nu, nem o Supremo Tribunal Federal com toda pompa pretensamente jurídica, nunca fez e provavelmente nunca fará.

Imagem feita com auxílio de IA

Um secretário de Estado, pago com o nosso dinheiro, resolveu transformar meme em filosofia de governo. Os gregos tiveram Platão e Aristóteles; os ingleses, Hobbes e Locke, os alemães, Kant e Hegel. Nós não ficamos por baixa, pois temos Helton Edi, uma espécie de Sade dos trópicos.

Enquanto Aristóteles elaborou um tratado de ética, Helton Edi compartilhou uma frase sobre cigarros e traseiros. A diferença é que os gregos tinham a tragédia; nós temos a comédia barata, temperada com hashtags.

A repercussão, previsível como novela das nove, veio em cascata. A oposição esfregou as mãos, os aliados fingiram que não viram, e blogs, sites e portais de notícias correram para escrever a manchete que já estava pronta: “Secretário diz que moeda de troca na cadeia é cigarro ou cu”. É a manchete que escreve sozinha. Um presente de grego para repórteres e editores preguiçosos.

E claro, depois veio o pedido de desculpas. Sempre vem. No Brasil, a desculpa é o hino nacional da classe política. Helton Edi recitou o bordão burocrático: que a postagem não reflete seus princípios pessoais, públicos e institucionais. Traduzindo: ele quis dizer e disse, mas não podia. É como o marido flagrado com a amante no motel que jura à esposa: “Não é o que parece”. Pois é exatamente o que parece.

Quem também não perdeu a chance foi a presidente do Sindicato dos Policiais Penais. Denunciou que o sistema prisional do Rio Grande do Norte virou de ponta cabeça com Helton Edi. O sistema prisional do Brasil todo está de ponta cabeça há bastante tempo. O que temos de novo é um secretário que diz em público exatamente que é e o que ocorre nos presídios e penitenciárias país afora. Ou alguém, inclusive os especialistas no tema – e o tema é sistema prisional, friso – acha que o meme compartilhado por ele é mentiroso? Ademais, de ponta cabeça é eufemismo. O sistema está virado do avesso, de pernas para o ar, ou melhor, de traseiro para cima, como a frase do secretário deixou claro.

E quanto a Bolsonaro, mencionado pelo secretário? Aparece como figurante de luxo, arrastado para dentro da piada. O ex-presidente, que já foi personagem de escândalos planetários, agora vira anedota penitenciária. É o destino inevitável de nossas excelências: terminam sempre como caricaturas, citadas em frases de botequim, rabiscadas em muros de banheiro ou compartilhadas em stories de Instagram e Facebook.

O episódio inteiro revela nossa vocação nacional. Fingimos indignação, mas nos deliciamos com o escândalo. Postamos memes, fazemos piadas, batemos palmas em silêncio. É o Brasil sendo o Brasil: hipócrita na superfície, devasso no subsolo. A verdade é que o secretário do governo Fátima Bezerra apenas disse o que todos já sabiam – mas dito da forma errada, no cargo errado e com a liturgia errada.

No fim, nada muda. O secretário pediu desculpas, o sindicato reclamou, Bolsonaro virou piada de cadeia, e nós, cidadãos, rimos. Rimos porque, de certa forma, Helton Edi Xavier prestou um serviço: ele nos lembrou que, neste país, até o poder público funciona na base de cigarros e favores obscenos. A cadeia é apenas um espelho aumentado do Brasil inteiro.

Eis o retrato: o secretário que deveria falar de disciplina fala de traseiros; o sindicato que deveria defender melhorias vira porta-voz de escândalo e o povo, que deveria se revoltar, gargalha. Somos todos cúmplices. A frase ficará eternizada, como tatuagem malfeita, no corpo político nacional. Talvez Anita, musa da má música, talvez a tatue lá, na moeda.

No Brasil, meu três ou quatro leitores, a liturgia do cargo não vale um cigarro. Um cigarro!, que fique bem claro.

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