Democratas autoritários
No Brasil viceja a ideia, elevada à categoria de mito, segundo a qual somos um povo pacífico, que a violência política por aqui não prospera. Tal ideia esconde o nosso autoritarismo social, como sobejamente indicam fontes históricas abalizadas
O autoritarismo ganha espaço nos dias de hoje e lideranças autoritárias, à direita e à esquerda, emergem explorando sentimentos de descontentamento e desconfiança que se espalham. Geralmente envergam vestes democráticas para enfraquecer as instituições democráticas que dizem defender, restringem a liberdade de pensamento e de expressão e o direito de contestação e tentam sofregamente consolidar suas bases de poder, criando ambiente para a controle das decisões em suas mãos e nas de seus satélites.
Regimes autoritários são diligente e meticulosamente construídos, por vezes manipulando as leis e instituições para alcançar seus objetivos, criando barreiras que inviabilizem e impeçam a entrada de novos competidores. A pretensão é manter e fortalecer o status quo.
O caminho não é novo.
O sociólogo e diplomata João Almino escreveu em sua obra Os democratas autoritários: liberdades individuais, de associação política e sindical na constituinte de 1946 que a sombra de Getúlio Vargas caía sobre a Constituinte de 1946, da qual, ressalte-se, o ex-ditador era membro. Para Almino, a lembrança do Estado Novo lançou a maior parte dos constituintes, ainda ressentidos com a ditadura getulista que acabara de se encerrar, em direção à construção de uma Constituição que evitasse concessões desmedidas à esquerda.
Assim, padecendo de males congênitos, a Constituição de 1946 estava fadada a morrer nas mãos dos democratas autoritários da União Democrática Nacional (UDN), sob a indiferença cúmplice do Partido Social Democrático (PSD), lotado de raposas cevadas pelo regime estadonovista mas ressabiadas com a emergência das massas no cenário político.
Uma mudança lenta e progressiva está em curso no Brasil, às vezes com mudança dos sinais ideológicos. Não tem nada a ver com golpe de Estado à moda antiga, como o que pretendeu Jair Bolsonaro e parte de seu grupo.
Já foi feito com Lula, na esteira da Lava Jata. Atualmente a(s) vítima(s) é/são outra(s) – e não me refiro apenas a Bolsonaro. Os sinais são claros e citarei apenas dois, ocorridos semana passada.
O ex-ministro do Supremo Tribunal Federal e atual ministro da Justiça Ricardo Lewandowski disse que discursos de parlamentares não têm imunidade em crimes contra a honra, contrariando a Constituição que no seu artigo 53 afirma:
“Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.
- 1º Os Deputados e Senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal.
- 2º Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.”
Li juristas discutindo a fala de Lewandowski. Um deles disse que o STF é o guardião da Constituição, logo a Constituição é o que o STF diz que ela é. Se assim for, que seja a apagado o que está escrito e reproduzido acima e para o que não há necessidade de interpretação. Está escrito. Caberia ao Supremo interpretar o que está nebuloso na Carta. Não é o caso.
Dias depois Dias Toffoli (perdoem-me o gracejo), ministro do STF, portanto senhor de sabe jurídico reconhecido (só devem figurar como ministros do STF pessoas de notório saber jurídico) declarou, como relator da questão referentes à regulamentação das redes sociais, que “liberdade de expressão absoluta protegeria PM que jogou homem de ponte e o marido que bate na mulher dentro de casa”.
Se o Brasil vivesse uma democracia plena, as falas de Lewandowski e de Toffoli seriam um ataque à democracia e uma afronta ao poder que mais a simboliza, a saber, o Congresso Nacional.
Não foram e não serão porque há democratas autoritários nos três poderes, parasitando-os e parasitando a democracia e conduzindo-a em direção a um regime no qual pouco valem as liberdades individuais.
Há uns anos era golpe permitir Lula disputando a Presidência da República. Hoje, é golpe levantar-se contra o regime, criticando-o, bem como apoiar qualquer ameaça eleitoral à reeleição de Lula ou de alguém por ele apoiado.
1937 começou com Vargas deslegitimando os candidatos presidenciais José Américo de Almeida e Armando de Sales Oliveira; depois foram fechadas as casas legislativas e suspensas as liberdades individuais. Depois de derrubado Jango, em 1964, as vítimas seguintes foram os mandatos dos parlamentares insubmissos e, depois, o cerceamento das liberdades individuais.
Não custa ficar em alerta contra os democratas autoritários que pilotam movimentos como os que ora observamos. Eles têm, ao final, um objetivo: controlar sozinhos o poder. O caminho: a suspensão das liberdades individuais, entre as quais as de pensamento e de expressão.