Estado-Família

por Sérgio Trindade foi publicado em 25.jan.25

Para Jair Bolsonaro, os governadores Tarcísio, Zema, Caiado e Ratinho Junior não têm experiência suficiente para dirigir o Brasil, mas a esposa dele, Michele, que nunca ocupou um cargo político algum, serve para ser Presidente da República, desde que ele, Bolsonaro, ocupe a Casa Civil da Presidência, conforme disse em entrevista: “Não tenho problemas [com eventual candidatura], seria também um bom nome, com chances de chegar. Obviamente, ela me colocando como ministro da Casa Civil, pode ser”, afirmou Bolsonaro (https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2025/01/23/bolsonaro-fala-em-assumir-casa-civil-se-michelle-for-eleita-presidente.htm).

Tudo em família.

Não sei se o ex-Presidente disse a sério que gostaria de assumir a Casa Civil de um suposto governo de sua consorte, mas falou sério quando acha que Michele é uma boa candidata ao Planalto. Mesmo, repito,  Michele não tendo experiência política e administrativa alguma.

As pretensões bolsonaristas são, por si sós, um tapa na cara do seu eleitor, afinal o ex-capitão do exército diz abertamente combater o sistema, o qual foi forjado sobre estruturas oligárquicas, parte delas de origem familiar.

O historiador Sérgio Buarque de Hollanda nos forneceu um ensinamento lapidar: “(…) a relação entre família e Estado, diferentemente do que sugerem teóricos políticos desde Aristóteles, não seria tanto de continuidade, mas de oposição: do geral sobre o particular. No caso da democracia liberal, o choque com a situação brasileira, em que prevalece a família patriarcal, seria ainda maior (…) a parcialidade, que o ambiente doméstico favorece, seria incompatível com a atitude neutra diante dos cidadãos, implícitas na democracia liberal”.

A origem do Estado é um dos temas mais polêmicos e inesgotáveis, dada a quantidade e diversidade de teorias, nenhuma delas estanque, porquanto os seus argumentos estarem presentes em mais de uma delas, pois o argumento essencial, por si só, não garante sustentação.

São seis as principais teorias: atos de força, contrato social, desenvolvimento interno da sociedade, elitista, familiar ou patriarcal e patrimonialista.

Na sua Teoria Geral do Estado, Sahid Maluf aponta cinco teorias: familiar, força, matriarcal patriarcal e patrimonial, às quais podem ser resumidas a três: familiar, força e patrimonial.

Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda nega a tese não-contratualista da origem familiar ou patriarcal do Estado. Para ele, “o Estado não é um ampliação do circuito familiar e, ainda menos, uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo. Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição. A indistinção fundamental entre as duas formas é prejuízo romântico que teve os seus adeptos mais entusiastas durante o século XIX. De acordo com esses doutrinadores, o Estado e as suas instituições descenderiam em linha reta, e por simples evolução, da família. A verdade, bem outra, é que pertencem a ordens diferentes em essência. Só pela transgressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado e que o simples indivíduo se faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável, ante as leis da Cidade. Há nesse fato um triunfo do geral sobre o particular, do intelectual sobre o material, do abstrato sobre o corpóreo e não uma depuração sucessiva, uma espiritualização de formas mais naturais e rudimentares, uma procissão das hipóstases, para falar como na filosofia alexandrina. A ordem familiar, em sua forma pura, é abolida por uma transcendência”.

Para chega a tal conclusão, buscou recuperar a nossa formação histórica. Segundo ele, em oposição à ética protestante do trabalho que constituiu a sociabilidade de grande parte da Europa, o historiador faz diagnóstico da sociedade portuguesa, a qual tinha uma moral de trabalho pouco desenvolvida, que se ajustou bem “a uma reduzida capacidade de organização social”, déficit que pariu uma colonização não planejada ou minimamente pensada, influenciando no domínio colonial do Brasil.

No Brasil, a hegemonia do patriarcado rural debilitou o desenvolvimento de uma burguesia urbana e fez prosperar a hipertrofia do poder do potentado rural. Daí, a “família patriarcal fornece (…) o grande modelo por onde se hão de calcar, na vida política, as relações entre governantes e governados, entre monarcas e súditos”.

A integração tardia do português à Europa desenvolveu uma forte cultura da personalidade, como se cada indivíduo conquistasse o seu mérito por si. Seriam indivíduos autossuficientes, corajosos e heroicos, que têm como valores precípuos a honra, a fidalguia e a fidelidade forjando um mundo no qual a regra era a recusa à hierarquia, a qual gerou a frouxidão da estrutura social e a resistência à regra social e à lei, portal para as dificuldades de governabilidade impessoal e democrática ainda hoje vigente no país, pois neste tipo de mundo, os discursos e ações que enaltecem os valores liberais tiveram muito pouco espaço, porquanto a sociedade ser dominada pela arbitrariedade e pelo familismo. Assim, o liberalismo foi transmitido apenas como fórmula e a tríade mágica da revolução francesa (Liberdade, Igualdade e Fraternidade) sofreu “a interpretação que pareceu ajustar-se melhor aos nossos velhos padrões patriarcais e coloniais”, numa transmissão que gerou impedimentos à racionalização na questão administrativa, econômica, social e política no Brasil.

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