Natal já teve brisa melhor

por Sérgio Trindade foi publicado em 20.ago.25

Vinícius de Moraes escreveu O vento (Estou vivo mas não tenho corpo / Por isso é que não tenho forma / Peso eu também não tenho, / Não tenho cor. // Estou vivo mas não tenho corpo / Por isso é que não tenho forma / Peso eu também não tenho, / Não tenho cor. // Quando sou fraco, me chamo brisa / E se assobio, isso é comum. / Quando sou forte, me chamo vento / Quando sou cheiro, me chamo pum.) como uma brincadeira com aquilo que não tem corpo, não tem forma, não pesa e não tem cor – mas insiste em existir. É quase uma definição poética do nada que se leva a sério.

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Brisa Bracchi é um sopro de um partido que nasceu e cresceu como um vendaval. Mas não um vendaval desses que derrubam árvores e arrancam telhados; é mais aquele vento inoportuno que bate quando você está de guarda-chuva e o guarda-chuva decide virar do avesso, deixando a gente com cara de palhaço no meio da rua. Brisa é um desvio de rota para a rota que o petismo sempre quis seguir, aquela estrada esburacada que acalenta o erro, mas tem barraquinha vendendo pastel a cada esquina ou, ainda, que utiliza, sob os auspícios de dirigente, escola para evento Lula Livre.

Brisa, erro político em qualquer lugar que tenha gente com dois neurônios, sustenta-se em pautas desgastadas e recalcadas, como se fossem roupas de brechó que a gente insiste em usar porque está na moda vintage. Ela é a face contrária de outro erro político, do qual não é nem saudável falar, aquele erro que, se a gente pronuncia em voz alta, sempre aparece um alucinado com camiseta verde-amarela para defender.

Pois bem, foi nesse cenário tragicômico que a vereadora decidiu financiar o evento Rolê Vermelho – Bolsonaro na cadeia com R$ 18 mil de emenda parlamentar. Um nome que soa como título de bloco carnavalesco, desses que saem pelas ruas com um estandarte improvisado e um carro de som tocando axé-music ou frevo. Só que, nesse caso, o enredo era mais explosivo: misturava muitos ritmos e difundia a ideia de um ex-presidente atrás das grades. Era o suficiente para transformar uma noite de festa em processo de cassação.

Na sessão plenária do dia 19 de agosto, os vereadores pareciam atores de uma novela mexicana. Um deles, ao brandir a denúncia, parecia pronto para gritar “Eu te acuso!”, como se fosse o Zorro desmascarando um vilão. Matheus Faustino, o denunciante oficial, falava com a entonação de narrador de programa policial: “Senhores, a vereadora usou o dinheiro do povo para financiar uma festa comunista!”. Foi aplaudido por alguns, vaiado por outros. Poderia ter sido confundido por alguém na galeria que jurava estar assistindo a um stand-up de Tiririca.

O evento em si não foi lá uma Virada Cultural, de São Paulo. Custou modestos R$ 18 mil: R$ 15 mil para uma, R$ 2,5 mil para outra e R$ 500 para um outro. Tudo dentro das normas, tudo com nota fiscal, tudo via inexigibilidade de licitação. Mas, no Brasil, gastar com música é aceitável quando se chama Arraiá do Povo ou Festa da Padroeira. Se for Bolsonaro na cadeia não pode. Pôde e depois não pôde Lula Livre dentro de uma instituição de ensino federal. Tudo depende dos ventos políticos.

A ex-vereadora Ana Paula ainda somou mais R$ 31 mil, totalizando R$ 49 mil. Ou seja, o que na prática seria só um show com três atrações musicais ganhou contornos de escândalo shakespeariano: traições, conspirações e uma protagonista encurralada pelo destino. Até Shakespeare, se tivesse visto a sessão, teria preferido escrever uma comédia.

Nos corredores da Câmara, os aliados de Brisa tentavam justificar com um malabarismo digno de circo de quinta categoria. Um assessor magricela, de camisa do Che Guevara, disse que o evento não celebrava a prisão de Bolsonaro, mas sim “a libertação das cadeias internas que aprisionam o povo brasileiro”. Era quase uma sessão de terapia coletiva paga com dinheiro público. Outro militante, com um entusiasmo delirante, afirmava que o nome original do evento era “Bolsonaro na Cadeira”, e que a referência era a uma cadeira cenográfica usada como metáfora. O problema é que a tal cadeira sumiu do palco, e ninguém nunca mais a viu. Há quem diga que foi parar na casa de um vereador.

Enquanto isso, no plenário, vereadores conservadores se revezavam nos discursos moralistas. Um deles, com cara de quem nunca recusou um cafezinho pago pela prefeitura, bradava: “Com dinheiro do povo não se faz festa contra ex-presidente!”. Ao que outro retrucava: “Mas pode fazer vaquejada com show de forró?”. O clima era de briga de vizinhos discutindo quem deixou a tampa da privada levantada.

Imagem feita com auxílio de IA

Brisa, com pose serena, alegava que o evento fora planejado antes da prisão domiciliar de Bolsonaro, decretada em 4 de agosto, e que não havia qualquer intenção oportunista. Mais ainda: destacou que os artistas abriram mão dos cachês, transformando o caso num episódio de realismo fantástico. Era como se os cachês fossem fantasmas: existiram, foram empenhados, mas evaporaram no ar quando a coisa esquentou. Cachês de Schrödinger: existiam, mas não existiam. Tem especialista no assunto aqui no Rio Grande do Norte. E é da turma de Brisa.

A imprensa nacional se deliciava com a história. Para jornais de São Paulo e Rio de Janeiro, Natal virava de repente a capital da guerra cultural. Colunistas que nunca pisaram em Ponta Negra escreviam como se fossem especialistas em política potiguar, descrevendo Brisa como a Joana d’Arc da esquerda ou como uma personagem de novela da Globo. O exagero era tamanho que faltava apenas um drone sobrevoando a Câmara para transmitir em pay-per-view.

E, claro, surgiram justificativas ainda mais bizarras. Um militante jurava que cadeia se referia à cadeia produtiva da cultura, e que Bolsonaro era apenas um apelido carinhoso para o boi de uma quadrilha junina. Outro dizia que o evento na verdade homenageava seu Bolso, um sanfoneiro da Redinha, injustamente confundido com o ex-presidente. Nessa altura, a imaginação já tinha deixado a política e migrado direto para o teatro do absurdo.

A votação foi arrasadora: 23 a favor da abertura do processo, 3 contra e uma ausência providencial. O clima era de julgamento solene, embora alguns vereadores estivessem mais preocupados em conferir o placar do futebol pelo celular.

Agora, o processo corre na Comissão de Ética, com prazo de até 120 dias para apresentar relatório. Brisa pode ser cassada, suspensa ou advertida. Se cassada, entra em cena sua suplente, Júlia Arruda, que já ensaia discursos no espelho.

Mas, no fim das contas, o caso revela a grande ironia da política natalense: vereadores que nunca levantaram a voz contra contratos suspeitos de transporte escolar ou de coleta de lixo se transformaram, de uma hora para outra, em paladinos da moralidade. Era como ver um time de várzea tentando jogar a final da Copa do Mundo, com muita pose, muito suor e um festival de trapalhadas.

Brisa, com seu jeito de vento fora de hora e gengivas que fazem inveja a Alan dos Santos, talvez tenha cometido apenas o pecado de batizar mal um evento. Se tivesse chamado Festival Cultural Potiguar ou Noite da Democracia, ninguém teria dado bola. Mas Bolsonaro na cadeia é nome que pede manchete, pede meme, pede processo. No Brasil, o problema nunca é o ato em si, mas o título da novela.

E assim a Câmara de Natal segue, ora palco de tragédia, ora auditório de programa de humor.  Teria até título: Emenda Cultural do Amor.

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Voltando a’O Vento, de Vinícius de Moraes, quando ele diz “quando sou fraco, me chamo brisa”, não há como não rir da coincidência com a vereadora Brisa, que parece também existir apenas como um sopro, um ventinho que mexe papel de processo na Câmara, mas não move uma folha de transformação real. Já o verso “quando sou cheiro, me chamo pum” dá o golpe final: aquilo que começa como um sopro poético, termina num constrangimento inevitável. Vinícius fez – há muito tempo, bem antes de Brisa nascer – piada com o vento, no entanto a líder política natalense e vereadora encarnou a piada em gente de carne, osso e mandato, afinal ela existe, aparece no Diário Oficial, ocupa cadeira, mas forma, substância e peso real… é difícil encontrar. A rima inocente que termina em “pum” é uma travessura do poetinha, mas, no caso da edil, vira metáfora perfeita: um sopro de discurso, muito barulho retórico, que termina em um efeito colateral inconveniente no ar.

No fim, meus três ou quatro leitores, a vereadora ameaçada não é nem vilã nem heroína. É apenas a protagonista de mais um episódio da nossa interminável comédia política, essa ópera-bufa tropical na qual o público não paga ingresso, mas financia o espetáculo com imposto e paciência. Para que os ventos e as brisas os carreguem em direção do diabo.

 

Por Astério de Natuba

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