O ciúme dos tiranos disfarçados

por Sérgio Trindade foi publicado em 13.out.25

Há homens que se irritam não com a injustiça, mas com o brilho alheio. Lula, por exemplo, é desses que sentem cócegas na alma quando alguém, em algum ponto do planeta, conquista o respeito que ele imagina merecer por decreto. E foi exatamente isso que aconteceu quando Maria Corina Machado, a mulher que desafia o ditador Nicolás Maduro, levou o Prêmio Nobel da Paz. O mundo aplaudiu uma venezuelana de coragem. E o Brasil oficial – aquele do Planalto e do Itamaraty lulista – torceu o nariz.

Celso Amorim, sempre de terno escuro e consciência cinza, fez cara de quem viu o diabo numa assembleia da ONU. Lula, por sua vez, resmungou entre dentes. O velho sindicalista, que já se imagina um personagem histórico de primeiro escalão, parece incapaz de conviver com o fato de que a História, às vezes, escolhe outros protagonistas. É um ciúme político, mas também moral: Maria Corina representa a resistência democrática contra o tirano. Lula, infelizmente, representa o aperto de mãos com o tirano.

Não é de hoje. Celso Amorim e Lula formam uma dupla que o tempo não absolverá. Em nome de um antimperialismo de conveniência, passaram a vida cortejando ditadores de todas as latitudes. Quando Hugo Chávez fechava rádios e jornais na Venezuela, Lula o chamava de companheiro e ria de suas bravatas como quem escuta samba de roda. Em 2007, na visita ao Palácio de Miraflores, chegou a dizer: “Chávez é um democrata, como eu”. O “democrata” acabava de expropriar a RCTV, uma das principais emissoras independentes do país.

Quando Fidel Castro morria de velhice enquanto seus opositores morriam de fome, Amorim pousava em Havana para render homenagens ao “líder histórico”. Lula chamava Fidel de “o homem mais sábio que conheci”. Nunca se perguntou por que a sabedoria cubana precisava de fuzil e paredón para se manter.

E quando Daniel Ortega começou a prender padres, bispos e freiras na Nicarágua – entre 2022 e 2023, mais de 800 religiosos foram perseguidos ou expulsos –, o Itamaraty limitou-se a “lamentar o mal-entendido”.

Os fatos são teimosos. Lula:

  • Em 2003, defendeu Chávez quando este foi acusado de aparelhar a PDVSA e manipular eleições.
  • Em 2010, recebeu Mahmoud Ahmadinejad, então presidente do Irã, sorrindo para as câmeras, como se o enforcamento de opositores fosse detalhe folclórico. O Itamaraty de Amorim chegou a votar contra uma resolução da ONU que condenava o regime iraniano por execuções.
  • Em 2023, chamou o ditador Nicolás Maduro de “companheiro” e disse que “a narrativa sobre a Venezuela é exagerada pela imprensa”.
  • Em 2024, autorizou viagem de Celso Amorim a Moscou para beijar o anel diplomático de Vladimir Putin, repetindo a fábula de que “a Rússia está cercada pela OTAN”, como se o bombardeio de civis em Mariupol fosse questão de geopolítica e não de humanidade.

O nacionalismo de Amorim é o nacionalismo dos abraços errados. E é esse o humanismo de Lula: o humanismo que não enxerga cadáveres quando o regime é “de esquerda”. Falta, a ambos, princípios verdadeiramente democráticos.

Quando Maria Corina foi anunciada como ganhadora do Nobel, Lula ensaiou um sorriso que parecia azedo. Ele, que já recebeu o título de Homem do Ano em revistas e universidades simpáticas, talvez imaginasse que o mundo civilizado lhe concederia um dia o mesmo prêmio. Afinal, o marketing petista o vendeu como o operário que virou estadista. É o pessoal que não entende que estadistas não dão em árvores. Wiston Churchill, Napoleão Bonaparte, Carlos Magno, Júlio César e Alexandre Magno foram estadistas de primeiro time; Ronald Reagan e Franklin Roosevelt e um ou outro, do segundo time; o brasileiro Getúlio Vargas talvez esteja aí num terceiro time. Sim, é bom avisar que estadistas não defendem torturadores em troca de petróleo.

O desconforto de Lula diante do Nobel venezuelano não é só político – é psicológico. A mulher que o desagrada não é apenas antichavista, mas o espelho invertido de tudo o que o lulismo representa. Maria Corina desafia o poder; Lula o adula. Ela resiste ao populismo armado; ele o exporta em contêineres ideológicos. Ela defende liberdades; ele negocia com tiranos em nome de um pretenso mundo multipolar.

Imagem feita com auxílio de IA

E, convenhamos, nada irrita mais um governante com vocação messiânica do que ver o altar sendo ocupado por outro santo.

Vocês, meus três ou quatro leitores, que acreditam que Bolsonaro tentou dar um golpe de Estado: qual seria sua reação se ele fosse anistiado este ano, eleito ano que vem e conseguisse patrocinar uma Constituinte reduzindo as liberdades democráticas daqui a dois anos? Você ia querer derrubá-lo da maneira que fosse possível, não? Pois esse era o contexto da Venezuela do começo chavismo. Hugo Chávez liderou uma tentativa frustrada de golpe em 1992. Dois anos depois recebeu uma anistia do presidente Rafael Caldera. Foi eleito em 1998 e, em 1999, mudou a Constituição para uma mais autoritária, bolivariana. Foi em reação a isso que tentaram derrubá-lo em 2002.

A história venezuelana é fascinante. A esmagadora maioria dos que criticam o prêmio dado a Maria Corina nem sabem que Chávez tentou dar um golpe antes de ser eleito. Mesmo conhecendo um pouco da história do país, eu não sei o que eu faria no contexto. Não sou venezuelano e não sinto/vivo a história deles como eles a sentem/vivem. Sei que eles conhecem a realidade deles muito mais do que nós a conhecemos. E penso que por muito menos nós, brasileiros, tentaríamos o derrubar um tirano no Brasil.

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