Ave, Moro!

por Sérgio Trindade foi publicado em 07.set.17

A Operação Lava Jato impôs ao cenário nacional uma reviravolta de proporções épicas, e no centro desse terremoto institucional está a figura de Sérgio Moro. O mundo político, esse conjunto de hábitos e vícios que se viu subitamente em xeque, reagiu com a habitual cartilha da defesa: acusações de estrelismo, de atrabiliariedade, de um desvio de finalidade que serviria à perseguição seletiva. Houve tempo em que se bradava a tese de que apenas os petistas estavam na mira, enquanto o PSDB e seus satélites permaneciam à sombra, sob a proteção de um estranho favor do julgador. Hoje, contudo, a exposição alcança quase todos os quadrantes partidários, fazendo com que a classe política, em seu conjunto, corra desesperada por alguma guarida salvadora, como uma anistia que lhes devolva o sossego perdido.

Não é de hoje que políticos, intelectuais engajados e escribas de toda ordem destilam o fel da crítica sobre a honorabilidade de Moro. E aqui, é útil recorrer à análise de George Balandier, em O Poder em Cena, para compreender a natureza do que se desfez. Balandier explica que o poder político é, em sua essência, uma teatrocracia, uma encenação que exige palco e camarins, uma forte carga dramática para sua execução. O regime, qualquer que seja, só se sustenta se o ocorrido nos camarins — a negociação crua, o acordo de bastidor — permanecer longe do palco, do espetáculo público. É do jogo político, dessa teatralização necessária, apresentar-se com uma aparência distinta da sua essência. Quem estuda a política sabe que o palanque nunca exprime a verdade dos bastidores.

Acontece que a modernidade tecnológica e a profusão de meios de comunicação – câmeras, gravações, sistemas de informação – romperam essa fronteira. Os camarins invadiram o palco. E as vísceras dos acordos, dos conchavos legítimos, mas também dos acertos escusos e das tramoias ladrônias, foram expostas sob a luz crua. A cada semana, assistimos a Lulas, Temeres, Aécios, Gedeis e tantos outros personagens terem seus segredos, suas fraquezas e suas falcatruas jogadas ao conhecimento público. Filmagens e gravações pulam dos camarins para a cena principal, revelando que a distância entre a aparência e a essência da política brasileira atingiu as raias da incivilidade.

É neste ponto que a figura de Moro adquire uma estranha e poderosa relevância. Em uma época em que as vísceras estão à mostra e os mecanismos de controle parecem falhar de maneira sistêmica, o inusitado é que do juiz só surjam, como elemento de denúncia, uma ou outra foto em eventos públicos com políticos ou leviandades soltas em blogs cuja credibilidade é a mesma de uma nota de três reais. Se a essência e a aparência, no teatro político, costumam ser categorias distintas, a civilidade e a decência tratam de aproximá-las. A Lava Jato é a quebra do espetáculo; Moro é o que resta de comedimento. Entre a barbárie que toma conta da vida pública brasileira, com seus personagens flagrados no escuro dos seus vícios, e a postura contida e o recato do juiz, que se expõe apenas através da letra fria da lei, o voto, inegavelmente, pende para o segundo. Ele é a antítese do teatro que nos envergonha.

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