As contas públicas e o abismo
O Brasil, meus três ou quatro leitores, não é um país. É uma peça de teatro em cinco atos, todos de tragédia. E o seu problema fiscal – esse fantasma tenebroso e seboso – é a mais brasileira das calamidades: previsível, evitável, fatal. Como toda tragédia, ele nasce da imprudência, cresce na omissão e morre sufocado pela própria gordura. O enredo é simples: receitas consideráveis e despesas obesas, uma folha de pagamento que engorda como um pecado de gula, enquanto os cofres, murchos, imploram clemência.
O resultado? Déficits fiscais recorrentes, sempre eles, como aqueles vilões de opereta que nunca morrem e sempre voltam para o último ato, brandindo a faca do endividamento. A dívida pública brasileira já ultrapassa 75% do PIB. Quem se importa? Uma elite do funcionalismo público tunga os combalidos cofres do Estado. Quem se importa? Políticos fatiam o orçamento público, tornado feudo da sanha perdulária de larápios de paletó. Quem se importa?
Os agentes econômicos, claro, que são como sogras, desconfiados por natureza.
Tentam-se ajustes aqui e ali, pontuais e mentirosos, mas o sistema tributário brasileiro é o próprio labirinto onde vivia o Minotauro, em Creta, complexo, regressivo e, claro, um monstro no centro, que devora reformas e regurgita insegurança jurídica. Some-se a isso o pacto federativo, uma mera ficção; o governo central concentra as despesas, enquanto estados e municípios agonizam, insolventes, com folhas de pagamento que mais parecem enciclopédias.
O teto de gastos? Ah, esse foi um suspiro de lucidez, criado em 2016, mas já perdeu eficácia, sufocado por “pressões políticas e medidas excepcionais”. Sim, exceção virou regra – e o país, como sempre, vive o dilema insolúvel: ou rompe com a irresponsabilidade fiscal, ou afunda de vez nesse pântano.
Mas alguém há de lembrar que “Toda grande caminhada começa com um simples passo”, dito atribuído a Buda e que serve como o tapete vermelho estendido antes do abismo. Porque, meus singelos leitores, no Brasil o primeiro passo nunca é o mais difícil; é sempre o mais adiado. E, como lembrou o poeta Horácio, da Roma antiga, com a fleuma dos que já conhecem os pecados humanos: “Quem começa uma coisa já tem metade feita”.
E não pensem que este é um drama novo. Não, não é!
O Brasil repete os seus erros com a obstinação dos patifes. Em entrevista ao CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas, Ernane Galveas, Ministro da Fazenda do Presidente Figueiredo, foi à cena e, de voz embargada, descreveu os tristes anos 1980, com juros escorchantes, inflação galopante, Estado falido: “Com taxa de juros a 20% não há taxa de retorno de investimento que pague o empréstimo. E entramos num processo de não poder pagar os juros. Começamos a acumular juros em cima de dívida a partir de 1979. É aí que começam os piores problemas. De 1979 a 1983 ocorrem três coisas terríveis: o petróleo triplica que triplica, os juros que se multiplicam por três ou por quatro e os bancos fecham as portas para os países do terceiro mundo. (…) É o período mais difícil da histórica econômica Brasil”.
A plateia, incrédula, assistiu ao Presidente Figueiredo pedir arrego ao colega americano, numa cena digna de Nélson Rodrigues, conforme relata relata Bernardo Braga Pasqualette, em Me esqueçam – Figueiredo: a biografia de uma Presidência. O Presidente brasileiro foi ao telefone na Granja do Torto e, valendo-se de um intérprete, “ligou diretamente para a Casa Branca (…), pediu a Ronald Reagan cerca de U$ 400 milhões para o Brasil fechar as suas contas em Nova York. A pouco usual situação não afetou o bom humor de Reagan”, que, irônico como convém a quem está do outro lado da corda, “advertiu Figueiredo sobre as consequências daquele ato que acabara de patrocinar: ‘Cuidado que você me derruba’.”
E agora, quatro décadas depois, cá estamos.
A situação atual da economia brasileira é difícil, porém muito distante daquela de quatro décadas atrás. Sim, mas aprendemos? Não. Seguimos adiando o primeiro passo, esse que “é difícil, mas necessário”. Preferimos empurrar o problema para frente, como quem varre cadáveres para debaixo do tapete. Só que eles voltam – sempre voltam – maiores e mais ameaçadores.
O Brasil pode não ter dinheiro, mas deveria ao menos ter palavra, afinal em economia, meus três ou quatro leitores, credibilidade é um ativo de crucial importância, sobretudo quando confiança e psicologia decidem mais que planilhas.
Mas o que temos?
Um governo cuja seriedade está comprometida, pois submete a urgente agenda econômica ao calendário eleitoral, como demonstra os remendos patrocinados pelo Ministro Fernando Haddad. E, como em todo drama brasileiro, as contas não fecham e o governo só olha para as receitas, só atua para aumentar receitas, nunca para abater despesas.
Eis a cena final: É hora da reforma administrativa nos três poderes, é hora de combater e expurgar penduricalhos que incham salários de funcionários públicos, é hora de racionalizar a política de assistência social. É hora de refazer o Estado em outras bases. Ou, então, passar o pires fora do país, porque internamente não dá mais.
E eu, que já vi esta peça antes, digo: preparem o pires. O Brasil é, afinal, um país vocacionado para repetir os erros – e sempre com a mesma direção, o mesmo roteiro e os mesmos aplausos, confirmando aquilo que Otto von Bismarck, o Chanceler de Ferro alemão, dizia sobre os três grupos de povos: os inteligentes, que aprendem com a experiência alheia; os medíocres, que aprendem da própria experiência, e os idiotas, que nunca aprendem. O Brasil está no último grupo, afinal somos adeptos da contra-indução.