A “çiemssa” como vocação
Nos dias que seguem, quando se discute freneticamente sobre liberdade de expressão, bateu-me saudades do bom, velho e sábio Max Weber e da discussão acerca da liberdade de cátedra (não de opinião), a saber, princípio que assegura a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento e a arte, enfim o saber. Tal liberdade deve ser plena para os professores, desde que os assuntos abordados em sala de aula garantam aos alunos acesso ao saber, conforme assegura a legislação brasileira no artigo 206 Constituição (O ensino será ministrado com base nos seguintes princípio), incisos II (liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber) e III (pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas) e no artigo 3º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios), incisos II (liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber), III (pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas) e IV (respeito à liberdade e apreço à tolerância).
Na conferência Ciência como vocação, dirigida (ela e uma outra, Política como vocação) aos jovens estudantes alemães, Max Weber relaciona os variados e multifacetados aspectos da escolha de uma carreira acadêmica, dos critérios de acesso até as peculiares exigências dela e, comparando e criticando a Alemanha e os Estados Unidos, mais os Estados Unidos do que a Alemanha, tendo em vista os seus critérios burocráticos e o apelo ao maior número de alunos como sucesso do professor; ainda mais porque o modelo norte-americano de universidades teve como base o alemão, à época (final do século XIX e início do século XX) o mais desenvolvido. O modelo brasileiro, ressalto, foi mal copiado do norte-americano, dada, entre outras coisas, a fluidez das regras sobre ascensão na carreira.
A conferência acima mencionada não foi feita para especialistas, por isso está em linguagem amena e dinâmica, bem diferente da utilizada pelo Weber acadêmico, e não tratando exatamente de ciência, mas, como já disse estudioso da obra do pensador alemão, “da situação espiritual das pessoas em uma civilização fundada na ciência”, apontando para a necessidade de o homem moderno “ganhar clareza sobre si e seu tempo”.
O pensador alemão estabelece uma relação entre docência e pesquisa, provavelmente nunca presente num mesmo individuo; para ele, a docência é um dom, enquanto a pesquisa pressupõe inspiração, mas também e principalmente trabalho, método, rigor e, mais ainda, consciência da impermanência das verdades/descobertas, que estão sempre avançando, sem contar a falta de sentido nesta atividade ou nos resultados do trabalho. O filósofo da ciência Thomas Kuhn, quase que na linha weberiana, disse depois que os cientistas só investigam algo que eles já sabem que encontrarão, mas os elementos que os movem é mistério, a curiosidade e a paixão.
A ciência e a erudição exigem a vocação de quem a elas se dedica e isso pressupõe a existência de uma aristocracia intelectual fundada na dedicação ao saber e à pesquisa. Diz Weber: “Aquele a quem falta a capacidade de por antolhos em si mesmo e desconvencer-se de que o destino de sua alma depende de ser correta sua interpretação particular de determinada passagem de um manuscrito estará sempre alheio à ciência e à erudição.” É preciso também uma paixão para realizar seu trabalho com afinco, mas, esta paixão ou inspiração não garantem sozinhas resultados, pois são apenas “pré-requisitos de um trabalho científico”.
O gênio alemão é certeiro em suas considerações sobre o espaço de sala de aula e deveria ser leitura obrigatória para qualquer um que se aventure por ali. Deveria estar na sala de professores de todas as instituições de ensino, pois cabe quase que à perfeição a uma infinidade de docentes que, sob o falso pretexto da liberdade de opinião, torce e retorce argumentos para apresentá-los de forma conveniente. É um ensinamento superior sobre o que professor algum deveria esquecer, a saber, não confundir liberdade de cátedra com liberdade de opinião desenfreada.
Fiquemos na companhia de Weber.
“Em uma sala de aula, a palavra é do professor, e os estudantes estão condenados ao silêncio. Impõem as circunstâncias que os alunos sejam obrigados a seguir os cursos de um professor, tendo em vista a futura carreira, e que ninguém dos presentes a uma sala de aula possa criticar o mestre. É imperdoável a um professor valer-se dessa situação para buscar incutir em seus discípulos as suas próprias concepções políticas em vez de lhes ser útil, como é seu dever, através da transmissão de conhecimento e de experiência científica. (…) O verdadeiro professor terá escrúpulos de impor, do alto de sua cátedra, uma tomada de posição qualquer, tanto abertamente quanto por sugestão. (…) É imperdoável a um professor valer-se dessa situação para buscar incutir em seus discípulos as suas próprias concepções políticas, em vez de lhes ser útil, como é de seu dever, através da transmissão de conhecimentos e de experiência científica. (…) Caso ele se julgue chamado a participar das lutas entre concepções de mundo e entre opiniões de partidos, deve fazê-lo fora da sala de aula, deve fazê-lo em lugar público, isto é, através da imprensa, em reuniões, em associações, onde achar melhor. Sem dúvida, é muito cômodo exibir coragem num local em que os assistentes e, provavelmente, os oponentes, estão supliciados ao silêncio. (…) O professor pode mostrar apenas a necessidade da escolha, mas não pode ir além, caso se limite a seu papel de professor e não queira transformar-se em demagogo”.
Vai além de suas raias o professor que busca fornecer crenças e ideais a seus alunos, em detrimento do conhecimento e da compreensão dos fatos. Decidir sobre que valores cultuar não é da alçada da atividade docente. Cabe ao professor, atuando com integridade intelectual, propiciar as condições para que os seus alunos possam escolher com responsabilidade quais caminhos deve trilhar, porquanto caber aos professores “aguçar a capacidade do estudante para compreender as condições reais de suas próprias ações” transmitindo-lhes “a capacidade de pensar com clareza e ‘de saber o que quer’.”
Isso, ressalte-se, independe das posições políticas ou da filiação ideológica que tenham. Qualquer outro caminho é valorização da impostura e da “çiemssa” em detrimento do conhecimento e da ciência e, infelizmente, tem sido o itinerário de muitos que, a despeito de lecionar, usam o espaço privilegiado de sala de aula para fazer proselitismo político-partidário.