Ariano Suassuna e o regime autoritário de 1964

por Sérgio Trindade foi publicado em 28.mar.25

Inicialmente, desculpo-me com os meus três ou quatro leitores pela extensão do texto. Geralmente escrevo textos curtos para serem lidos rapidamente. Quando longos demais, divido-os  em seções publicadas em vários dias. Não consegui fazer isso, porque fui descobrindo as coisas e me envolvendo com elas. Confesso: sou encantando pela obra de Ariano Suassuna e pela figura carismática dele. Isso, porém, não me inibiu e o que li de estudos sobre ele, principalmente os mais recentes, com novas descobertas, embasam o que escrevi.

Li em certas horas de certos dias de minhas curtas férias alguns trabalhos sobre o regime de 1964 e um me chamou particularmente a atenção porque, tirando algumas boas e esclarecedoras passagens, está contaminado por uma visão política-partidária-ideológica acentuadamente militante e estreita que não explica praticamente nada da realidade.

Há muito tempo estudo o período imediatamente anterior ao golpe de Estado de 1964 e o período autoritário que durou vinte e um anos e percebo que grande porção da academia brasileira ainda é tomada por uma visão binária, segundo a qual há os apoiadores versus resistentes, vítimas versus algozes, democratas versus golpistas, visão que pouco explica as mudanças de rota e exames de consciência que marcaram indivíduos, instituições e parcelas da sociedade brasileira durante aquele período obscuro de nossa história, o qual precisa ser entendido e não massacrado.

Aqui na província temos aguerridos militantes políticos que estrearam na política estudantil entre o final dos anos 1970 e o início dos anos 1980, quando a ditadura já estava derrotada, para utilizar expressão cara a Élio Gaspari na sua consagrada série sobre o regime dos generais-presidentes, mas posam como guerrilheiros que lutaram contra a feroz ditadura.

Certo dia, assistindo ao programa Roda Viva no qual Rachel de Queiroz era entrevistada, vi estarrecido um dos entrevistadores, o escritor Caio Fernando Abreu, abandonar o papel que deveria ali desempenhar para fazer militância politicamente correta. Isso em 1991, seis anos após os civis assumirem o leme do país e quase dois do governo de Fernando Collor, primeiro presidente eleito desde 1960. O motivo: a escritora, uma das mais importantes de nossa literatura, amiga do primeiro general-presidente, foi simpática ao regime de 1964 e ele, Caio Fernando Abreu estava incomodado em estar ali diante dela.

Após o golpe de Estado liderado por Castello Branco e outros generais e alguns governadores civis, entre os quais Carlos Lacerda (Guanabara), Adhemar de Barros (São Paulo) e Magalhães Pinto (Minas Gerais), a nova ordem buscou se aproximar de intelectuais e, para tanto, fundou, em 1966, o Conselho Federal de Cultura (CFC), o qual se tornou responsável por elaborar uma política nacional de cultura.  Os seus integrantes eram intelectuais considerados neutros ou simpáticos do golpe. Nomes importantes e consagrados de nossas letras tiveram assento no CFC. É o caso de Gilberto Freyre, Guimarães Rosa e Rachel de Queiroz, a amiga de Castello Branco.

Ser do CFC durante o regime dos generais-presidentes não é mérito e nem demérito para ninguém e os intelectuais que lá estiveram não foram os primeiros a prestar serviço a regimes autoritários. Cassiano Ricardo e Carlos Drummond de Andrade também foram próximos a ditaduras. Ambos serviram ao Estado Novo, a ditadura pilotada por Getúlio Vargas.

Drummond, um dos nossos maiores poetas, trabalhou sob a direção de Gustavo Capanema, Ministro da Educação. Era chefe do Serviço de Documentação, de 1934 (três anos antes do golpe de Estado) até 1945, quando o ditador foi deposto. Ali, Drummond era responsável por redigir discursos, documentos oficiais e organizar publicações, além de participar de projetos culturais patrocinados pelo Ministério. Sua proximidade com Capanema, mineiro como ele, era notória, embora o seu papel fosse claramente técnico e burocrático, não político.

E aí, levaremos Drummond à fogueira?

Ariano Suassuna (1927–2014) foi um dos mais importantes escritores, dramaturgos e intelectuais brasileiros, reconhecido por sua defesa da cultura popular nordestina e por sua obra que mescla tradição erudita e elementos regionais.

Nascido em 16 de junho de 1927, em João Pessoa, Paraíba, filho João Suassuna, que chegou a governar o estado, cresceu em meio ao tumulto político do final dos anos 1920 até os anos 1940.

A morte trágica de seu pai, assassinado por motivos políticos em 1930, marcou sua infância e influenciou temas de injustiça e luta em sua obra.

Concluiu, em Recife, o curso de Direito, mas sempre teve pouco apreço pela área, como disse inúmeras vezes em suas palestras. Seu interesse era literatura e teatro.

Sua escrita mistura linguagem poética, ironia, elementos do barroco e referências ao sertão nordestino, abordando temas como justiça social, fé, misticismo e a fusão entre o sagrado e o profano.

A sua obra mais famosa, Auto da Compadecida, de 1955, é uma peça teatral que combina humor, drama e elementos da cultura popular, como o cordel e a religiosidade, mas há outras que também figuram como clássicos: A Farsa da Boa Preguiça (1960) e Romance d’A Pedra do Reino (1971), ambas explorando mitos nordestinos e linguagem barroca.

Ariano Suassuna, que defendia a valorização de manifestações como o cordel, o mamulengo, o maracatu e a xilogravura, fundou o Movimento Armorial na década de 1970, com o objetivo de criar uma arte brasileira erudita baseada nas raízes populares do Nordeste, integrando literatura, música, artes plásticas e teatro. Por isso, foi celebrado não apenas por sua obra literária, mas por seu papel como agitador cultural e uma espécie de guardião das tradições do nordestinas.

Festejado e cultuado, com razão, como um dos grandes nomes de nossa literatura, suas palestras, marcadas por humor, sabedoria e paixão pela cultura popular, eram bastante concorridas. Foi professor de Estética na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Secretário de Cultura de Pernambuco, quando promoveu projetos culturais como o Paço do Frevo e incentivou festivais tradicionais. Recebeu prêmios como o Machado de Assis (1993) e foi membro, de 1990 a 2014, da Academia Brasileira de Letras. Faleceu em 23 de julho de 2014, em Recife, deixando um legado como um dos grandes defensores da identidade cultural nordestina. A sua postura sempre foi marcada pelo nacionalismo cultural, mas não político-partidário. Ele era reconhecidamente um ferrenho defensor da cultura brasileira e nordestina, crítico da influência estrangeira na arte e na identidade nacional. Sua crítica ao colonialismo cultural era uma forma de resistência simbólica, não necessariamente alinhada a projetos políticos específicos.

Ariano Suassuna apoiou o regime militar instaurado em 1964, embora mantendo a postura de resistência cultural e crítica indireta ao autoritarismo. Sua oposição ao regime se manifestou principalmente por meio de sua arte e defesa da cultura popular. Foi crítico da censura imposta pelo regime, que afetou artistas e intelectuais. Sua peça A Farsa da Boa Preguiça, por exemplo, foi censurada em 1966 por conter críticas sociais e políticas veladas, interpretadas como uma sátira à ordem estabelecida. Em entrevistas, costumava destacar a importância da liberdade artística, indo contra o cerceamento imposto pela ditadura; evitava confrontos abertos e diretos com o regime, usando metáforas e humor para criticar a opressão. Não foi filiado a partidos, mas teve proximidade com figuras de esquerda, como o educador Paulo Freire, e apoiava causas sociais ligadas aos mais pobres – algo que o colocava em desalinho com o regime militar.

Tentou manter alguma distância do regime, no entanto, segundo Antônio de Pádua de Lima Brito, em Ariano Suassuna, Cultura Popular, Identidade e Tradições como Elementos Definidores da Nacionalidade, Ariano Suassuna ocupou posições dirigentes ao longo do período e se “colocou publicamente como um dos intelectuais mais enfáticos na defesa do governo militar, especialmente na segunda metade dos anos 1970. Em artigos publicados no Diário de Pernambuco, esse apoio foi explicitado e justificado repetidamente nos seguintes moldes: ‘O motivo principal de eu, em princípio, dar meu apoio aos Soldados é que, não tendo partido, meu partido é o Brasil – e o único Partido que eu vejo com organização e força suficientes para comandar o nosso processo de emancipação é a Força Armada Brasileira’.”.

Algumas análises históricas sugerem que parte da intelectualidade nordestina teve postura ambígua no início do regime. Gilberto Freyre, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Câmara Cascudo e outros são citados como simpatizantes do regime autoritário civil-militar. O silêncio impera quanto a outros nomes, como é o caso de Ariano Suassuna. Menções eventuais a uma possível simpatia inicial são feitas em virtude do seu perfil católico e anticomunista, sem que isso tenha se traduzido em apoio ao regime – especialmente após a radicalização da repressão pós-AI-5.

Carlos Newton Junior, professor da Universidade Federal de Pernambuco, certamente o maior conhecedor da vida do escritor e autor da biografia Ariano Suassuna: Uma Vida, não diz muito sobre o assunto, ressaltando apenas que Ariano via a ditadura como um período de asfixia cultural. É pouco. Trabalhos recentes têm sido cruciais para ir além da visão binária que tolda qualquer possibilidade de conhecer o período e lançar luz sobre a relação de importantes personalidades das artes e das letras com a ditadura.

A relação de Ariano Suassuna com o regime autoritário de 1964 foi marcada por uma evolução de posições, desde o apoio inicial até a crítica e defesa da redemocratização, pautada por sua preocupação com a valorização da cultura popular brasileira como fundamento da identidade nacional, como já apontado acima. Ele foi membro do CFC, quando o Conselho representava o braço ideológico de setores nacionalistas que apoiavam o regime, segundo registra Antônio de Pádua de Lima Brito, no trabalho Ariano Suassuna e o Regime Militar: a cultura popular como questão de soberania nacional e  Ariano Suassuna Cultura Popular Identidade e Tradições como Elementos Definidores da Nacionalidade, dois trabalhos que mostram um Ariano Suassuna de carne e osso, expressam a sua grandeza sem retirá-lo do contexto no qual viveu e que limitou suas ações. Na mesma linha, o pesquisador Anderson da Silva Almeida, mestre e doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e organizador da obra Ariano Suassuna no teatro da vida, em entrevista à revista Aventuras na História, diz com propriedade: “A presença de Ariano Suassuna no Conselho Federal de Cultura (CFC) no período da ditadura, que aparece nos textos de Lucas Arruda e de Dimas Veras, não é para levarmos o autor a um imaginário tribunal da História, como pensam algumas pessoas”.

Tomando os trabalhos de Antônio de Pádua de Lima Brito como guia, é possível dizer que Ariano Suassuna apoiou inicialmente o golpe de 1964, alinhando-se às ideias nacionalistas e conservadoras promovidas pelo governo, apoio que refletia sua defesa da cultura popular como elemento fundamental para a afirmação da identidade e soberania nacional. O Movimento Armorial, que buscava criar uma arte erudita baseada nas raízes populares da cultura nordestina, estava em consonância com os esforços do regime de mobilizar sentimentos nacionalistas em prol da política de segurança nacional e da modernização conservadora do país. ​No CFC, suas concepções sobre cultura popular e identidade nacional dialogavam com as políticas culturais e ideológicas do regime.

Anderson da Silva Almeida é claro sobre o objetivo da obra que organizou, sem a intenção alguma de sacralizar o escritor, mas de mostrar as contradições e as ambivalências. Para ele, as pesquisas feitas por estudiosos como Lucas Arruda, Antônio Brito e Dimas Veras lidam com “farta documentação – principalmente de jornais”, que demonstram o “apoio de Ariano Suassuna à ditadura, marcadamente até a primeira metade da década de 1970. Ariano tinha divergências sérias com intelectuais comunistas em Pernambuco, a exemplo de Celso Marconi, que desaguaram, inclusive, em agressões físicas que partiram de Ariano”. Também trazem os elementos que formam Ariano, “uma mistura entre o popular e o erudito, o sagrado e o profano, o clássico e o moderno, a poesia e o romance, incluindo sua inicial visão monarquista e sua conversão para uma visão de esquerda do mundo”.

Paulatinamente o grande mestre da cultura passou a criticar o regime autoritário e a defender a abertura política, evidenciando a mudança em seu posicionamento em relação ao governo, notadamente, diz Anderson da Silva Almeida, “quando a ala nacionalista das Forças Armadas não corresponde às expectativas”. Aí ele “rompe abertamente e passa a fazer críticas contundentes nos jornais, chamando-os de entreguistas e até de traidores, apoiadores do capital estrangeiro que estaria ‘invadindo, subornando, corrompendo, furtando e descaracterizando’ o Brasil”.

Quem quiser conferir, deixo abaixo as indicações:

Brito, Antônio de Pádua de Lima. Ariano Suassuna e o regime militar: a cultura popular como questão de soberania nacional. Disponível em https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/tematicas/article/view/13674/8971

Brito, Antônio de Pádua de Lima. Ariano Suassuna Cultura Popular Identidade e Tradições como Elementos Definidores da Nacionalidade. Disponível em file:///C:/Users/sergi/Downloads/13.+Artigo-MEM%C3%93RIAS-DE-PESQUISA_Ant%C3%B4nio-Brito+(1).pdf

Previdelli, Fábio. Ariano Suassuna e o Golpe de 64: de defensor a crítico do regime. Disponível em https://aventurasnahistoria.com.br/noticias/reportagem/ariano-suassuna-e-o-golpe-de-64-de-defensor-critico-do-regime.phtml

Entrevista com Rachel de Queiroz no Roda Viva. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=zzCoEwnI-Ek

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