Solenidades do engodo
Honoré Sept sempre tivera uma alma de segunda-feira: cinzenta, hesitante, indecisa entre a covardia e o crime escondido. Até para errar, era covarde. Por isso, fazia tudo às ocultas. Foi por isso que, quando roubou o sócio e o nome da oficina – “A Ilibada, uma promessa mecânica que jamais se cumpriria –, ele não sentiu culpa. Sentiu azia. Uma aziazinha longe. Nada que um sal de frutas não resolvesse. E uma certa nostalgia de sua falecida mãe, que também era pequena e brava, mas sem bigode.
À época do golpe, Honoré ainda era livre. Quer dizer, não era casado com Nain de Feuilleton, uma mulher de um metro e trinta, mas cuja presença enchia qualquer ambiente com a autoridade de um general prussiano com TPM. Tinha bigode, sim, e orgulho dele. “É minha assinatura facial, Sept!”, gritava ela, enquanto esmagava porcas e parafusos com a mão nua, como quem esmagasse a autoestima do marido, um traste sem coluna vertebral.
Nain fora sua chefe numa loja de peças, a Para-choque de Graça, onde ele aprendera a obedecer sem limites. Casaram-se quando ela, cansada de comandá-lo no expediente, resolveu estender o expediente até o leito conjugal. “Ou casa comigo ou viro tua credora vitalícia!” – ameaçou, com uma chave inglesa na mão e um buquê de flores murchas na outra.
O melhor amigo que Honoré tinha – e isso já dizia tudo sobre a vida dele – era Perruche Pulcherium. Um palhaço nato e sem escrúpulos. Criado por uma avó que o educara com carinho e chantagem emocional, Perruche aprendera cedo que trabalhar era coisa para quem não sabia bajular. Nas empresas por onde passava, fazia acrobacias morais dignas de um circo soviético. Dançava conforme a música, desde que a música fosse tocada por um superior hierárquico. A cada chefe que conhecia, virava um novo fã. “Eu admiro sua liderança, mesmo quando o senhor erra – aliás, sobretudo quando erra!”, dizia, com os olhos úmidos de falsa lealdade.
Juntos, Honoré e Perruche fundaram o que chamaram de Conglomerado do Improviso, uma rede de esquemas, fraudes e negócios de ocasião que iam desde vender peças recondicionadas como novas, até criar cursos técnicos de conserto de peças que nem existiam.
Foi assim que cruzaram o caminho de Hors Route, professor que se tornou diretor de uma escola técnica com nome de novela bíblica: Instituto Canaã de Solenidade e Tecnologia.
Preguiçoso como um padre em retiro espiritual, Hors se animava com poucas coisas: cortar faixas inaugurais, ser citado em notas de jornal, recepções, viagens e um auditório para o qual pudesse falar, por horas, coisa alguma sobre nada. Tinha um álbum de fotografias com autoridades, segurando placas, certificados, e em raros casos, uma taça de champanhe. Nma foi visto em sala alguma ministrando aulas.
Quando conheceu Honoré e Perruche, ficou encantado. “Vocês são visionários!” – exclamou, sem perceber que os dois já estavam visionando sua assinatura nos papéis da próxima fraude. Nain de Feuilleton, que desconfiava até de sombra em dia nublado, tentou alertar o marido. “Esse diretor tem cara de quem fede a tapete velho e propina. Vamos nos associar a ele para arrancar dinheiro do povo”.
“Querida, é por aí”, disse Honoré, tremendo, enquanto ela afiava a unha com um canivete. O mesmo que ele usava para tirar cera das ouvidos. “Não é todo dia que a gente encontra alguém com verba pública sobrando”.
Nasceu então o Curso de Mecatrônica Litúrgica, um projeto tão absurdo que só podia ser aprovado com louvor pela Comissão montada pelo diretor mandrião. Misturava robótica, manutenção de automóveis e fundamentos teológicos. “O aluno sairá capacitado para consertar um motor e exorcizar um carburador possuído”, dizia enquanto ria Perruche Pulcherium. Claro, não foi ele quem escreveu o projeto, afinal seria professor da escola por amizade, porque mal sabia juntar as letras, tirando as de seu nome.
Hors Route assinou tudo com a preguiçosa empolgação de sempre. Aproveitou para fazer um discurso sobre a importância da educação, etc, etc e etc. Perruche já articulava com os apaniguados, um branco vesgo e um patola barbudo a como desviar as verbas, enquanto Honoré lidava com o maior desafio de todos: enaltecer a mulher, responsável por elaborar o projeto do curso com base em Paulo Freire e alguns de seus discípulos do Brasil e professores ligados à educação profissional, freireanos ou não.
Nain, uma mistura de cão farejador e editora do Diário Oficial, encontrou brechas para surrupiar ainda mais dinheiro do povo. Guardou toda documentação dos trambiques embaixo do colchão – onde, aliás, também guardava dois pés de meia do sócio antigo de Honoré, junto com um papel timbrado da extinta A Ilibada.
“Você vai ser preso, Honoré! E se for, espero que a cela tenha parafuso folgado, porque você não aguenta mais de três minutos sem me perguntar o que fazer!”
Honoré tentou argumentar, mas como todo homem dominado por uma anã de bigode, só conseguiu murmurar: “Quer um chazinho, amor?”
O escândalo só estourou quando Hors Route apareceu na TV local, dizendo que a escola tinha implantado com sucesso a “evangelização técnica de circuitos elétricos”. Um repórter — ateu e engenheiro — resolveu investigar. Descobriu que o curso era ministrado num galpão vazio, onde só havia um projetor quebrado, três cones de trânsito e um boneco inflável vestido de pastor.
No dia da operação da polícia, Perruche conseguiu fugir vestido de coroinha. Honoré foi encontrado dentro de uma caixa de ferramentas, suando como um pistão no verão. Nain quebrou a porta da delegacia com um pé de cabra e exigiu que o levassem para cela especial — “com ventilação e espaço para minha indignação.”
Hors Route, por sua vez, saiu algemado, mas sorrindo para as câmeras. “Nunca me senti tão importante”, disse ele, antes de perguntar se podia dar entrevista exclusiva para o Jornal do Bairro.
Hoje, Perruche vive vendendo cursos de “PNL para funcionários públicos” em cidades pequenas. Hors Route é palestrante motivacional e tem uma coluna quinzenal: A Solenidade da Alma. Honoré virou técnico de eletrodomésticos por correspondência — e só atende por telefone, porque Nain o vigia com um binóculo.
E Nain? Ah, essa fundou a Associação das Esposas que Mandam. É presidente, diretora, tesoureira e segurança. Seu lema é um adesivo colado no para-choque do carro: “A mulher é o motor. O homem, na melhor das hipóteses, é a buzina.”