O “D” resolve tudo: D-cracia, a democracia dos virtuosos
A democracia, essa deusa de lábios pintados de vermelho e coxas cobertas por vestidos constitucionais, é tratada como um dogma inquestionável – uma senhora empertigada que ninguém ousa contrariar, ainda que esteja com bafo de morte. Vê-se nela um casamento perene entre o povo e o Direito, uma santa trindade de igualdade, liberdade, ordem e beicinho.
A verdade, porém, meus três ou quatro leitores, é que a democracia vive em estado comatoso, e o tubo que a mantém respirando se chama vigilância. Canalhas travestidos de salvadores tentam matá-la diária e cotidianamente, sufocando-a com abraços e beijos traiçoeiros. Entre os carrascos que a cortejam com punhal no bolso, temos o autoritarismo, a desinformação, o populismo histérico e histriônico, a podridão institucional e a indiferença do povo, o qual, de tão cívico, nem se levanta do sofá.
O autoritarismo é um amante sórdido e ladino. Às vezes chega chutando portões e portas, outras entra sorrindo sorrateiramente pela janela. Concentra o poder como quem amassa pão, esvazia o Judiciário, bocejando, com leveza e estrangula a imprensa como quem afaga. Em nome da moral – oh, a moral! – justifica todo tipo de indecência. A desinformação, por sua vez, é uma dama de veneno doce: espalha mentiras como perfume barato, entope as redes com delírios e faz o povo duvidar até da própria certidão de nascimento, transformando o debate público num picadeiro, no qual os palhaços são sérios demais e os sérios viram palhaços.
O populismo, ator de terceira ou quarta categoria, é aplaudido de pé. Com suas falas infladas e olhos marejados, promete transformar a realidade em folhetim meloso, dividindo a plateia entre mocinhos e vilões; de um lado, o povo puro – entidade que ninguém viu; do outro, a elite corrupta, essa sim, com CPF ou CNPJ registrado. Nada resolve (nem quer resolver), mas dramatiza. Não constrói (nem quer construir), mas acusa. Mina, corrói e desfaz as estruturas que sustentam o edifício democrático. Já as instituições, pobrezinhas, em avançado estado de senilidade, urinam nas calças e ainda se apresentam como se estivessem funcionando. São bonecos usados não pelo bem comum, mas para o bem de um ou outro mequetrefe engravatado ou os seus prepostos.
E o povo… ah, o povo! Esse personagem trágico de toda democracia – entediado, desiludido e cínico, só se levanta do sofá para votar e volta correndo para assistir televisão ou navegar nas redes sociais. Essa apatia, esse esgotamento da esperança entrega a democracia nas mãos de qualquer D. Sebastião poleiro. O vácuo da cidadania logo se enche com fanáticos, palhaços, oportunistas, todos com a Bíblia na mão e a Constituição debaixo do sapato ou escondida sob capachos.
Quem é contra a democracia? Ninguém. Nem mesmo o torturador aposentado, o ditador de pijama, o fascista de sapatênis, o comunista de sandália de dedo. Dizer-se a favor da democracia é como amar a mãe: não pega mal. Quer posar de civilizado? Seja democrático, mesmo que no íntimo você tenha horror quando os seus oponentes exerçam a liberdade. Conheço uns tantos – ex-revolucionários de porre ou de ressaca e ex-censores reciclados – que hoje clamam e choram pela democracia como carpideiras de ocasião. Passaram décadas amaldiçoando a burguesa, e hoje a beijam como se fosse uma Nossa Senhora Redentora de Votos.
A ditadura de 1964, com todos os seus gorilas e porões, errou muito no marketing. Ao invés de dizer elaborar atos institucionais devia ter feito atos institucionais democráticos. O cheiro teria sido menos de enxofre e mais de perfume francês. O Serviço Nacional de Informações (SNI) pecou errou mais por não ter sido batizado como Serviço Nacional Democrático de Informações (SNDI); com o “D” de democrático no nome, talvez hoje estivesse vendendo camiseta na internet. E a gloriosa Delegacia da Ordem Social (DOPS)? Um bom nome para ela seria Delegacia Democrática da Ordem Social. Escrita num letreiro de neon fecharia o comércio, com o perdão do trocadilho.
Os generais, sempre atrasados nas modas, só descobriram o truque quando já estavam tirando a faixa para entregá-la à oposição civil. E aí criaram o Partido Democrático Social (PDS), sucessor da moribunda Aliança Renovadora Nacional (Arena). Antes tarde do que nunca: colocaram “democrático” no nome, como quem bota desodorante depois do enterro.
Quarenta anos depois, o fetiche persiste. Hoje, basta dizer que algo é “pela democracia” para a imprensa aplaudir, o Supremo Tribunal Federal (STF) piscar e a plateia lacrar nas redes sociais e jornalistas militantes chegarem a orgasmos múltiplos. Pode-se prender, calar, censurar – desde que a legenda diga “em defesa da democracia”. E ninguém estranha. Afinal, quem usaria a palavra “democrático” em algo que não o fosse? Só um psicopata. Ou um marqueteiro. Ou ambos.
E se você – veja só, você! – ousar desconfiar das intenções democráticas dos virtuoses da democracia, será excomungado. Nesse momento, caríssimo leitor, não duvide das intenções democráticas de democratas juramentados, como diria Odorico Paraguaçu, você atenta contra a democracia e, portanto, é um sujeito não democrático, contra quem todos os pretensos democratas devem se voltar. Será linchado na nova Ágora, as redes sociais, sucedânea das antigas ruas.