Cultura e resistência: a tensão entre o sertão de Câmara Cascudo e o de Euclides da Cunha
Euclides da Cunha construiu um sertão implacável, marcado pela resistência de seu povo e pela dureza de um ambiente que sufoca suas possibilidades. Em contrapartida, Câmara Cascudo elaborou uma visão do sertão que, embora também imersa nas adversidades da terra e de sua gente, enfatiza a riqueza cultural e simbólica dessa região.
Os dois autores representam escolas de pensamento diferentes, fornecendo-nos visões contrastantes, embora complementares, sobre o sertão. Se para Euclides o sertão é um campo de batalha entre o atraso e a modernidade, Cascudo contrapõe essa visão, mostrando-o como uma rica tapeçaria de cultura popular e tradição.
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N’Os Sertões, Euclides da Cunha apresenta a região como um lugar onde a geografia inóspita, marcada pela seca e pela escassez, moldou a psique do sertanejo e sua relação com o mundo. Sua análise é profundamente científica e não poupa o sertão de sua dureza. Não é apenas um simples cenário de miséria, mas o reflexo de uma civilização isolada e esquecida, que existe à margem do processo de modernização que se instaurava nas grandes cidades brasileiras. Por isso, o sertanejo não é somente um mero ser rural, mas um homem formado pelo ambiente hostil, marcado pela resistência e, também, pela impotência diante do poder central; um ser que se define pela luta constante e condenado a uma existência de frustração, sem nunca atingir uma verdadeira ascensão social. Seu grande drama é o de um povo que, por mais que resista, não consegue se integrar ao Brasil que se urbaniza e se moderniza.
Em polo diferente, mas não diametralmente oposto, Câmara Cascudo tem uma abordagem mais festiva e celebratória do sertão. Para ele, o sertão é um celeiro cultural, uma região de riquezas imensuráveis quando se trata de costumes, mitos, danças, comidas e tradições. Para o intelectual do Rio Grande do Norte, o sertão é um território de luta e sofrimento, mas também de vitalidade e resiliência cultural.
Ao estudar a cultura popular, Cascudo resgata a identidade única do sertão, celebrando o espírito criativo e a capacidade de reinvenção do povo sertanejo. A seca e a dureza da terra são, para ele, apenas parte do cenário de uma região marcada por uma cultura rica e profundamente enraizada nas tradições do país; um lugar de memórias e de saberes antigos, onde o povo se refaz a cada geração, preservando um acervo imenso de práticas e crenças que formam a base da cultura brasileira.
A divergência de enfoques não é uma contradição, mas sim um reflexo das múltiplas facetas do sertão. Euclides da Cunha via o sertão com uma lente profundamente crítica, focada na luta pela sobrevivência e nas dificuldades socioeconômicas; um lugar de sufocamento, onde o isolamento é geográfico e social, e a cultura popular, embora presente, é secundarizada diante das questões de opressão e resistência. Já Cascudo apresenta o sertão como um laboratório cultural, onde a resistência se dá no campo das ideias, das tradições e da preservação das raízes brasileiras, sem ignorar as dificuldades do sertanejo. Para ele, há um poder transformador na cultura popular, que se refaz a cada ciclo e transcende os obstáculos impostos pela aridez do ambiente.
A relação entre as duas visões reside em um equilíbrio tenso entre o sertão como espaço de resistência física e social, para Euclides, e como um lugar de resistência cultural, para Cascudo. Para aquele, o sertão é um lugar marginalizado que encarna o drama da resistência sem perspectiva de futuro; Cascudo, por sua vez, celebra uma resistência cultural que se mantém viva apesar de tudo. Deve-se destacar, porém, que a visão cultural de Cascudo dialoga com a análise que Euclides da Cunha faz do sertanejo como um ser determinado pelo ambiente, o qual, mesmo em sua dor e marginalização, carrega dentro de si uma força vital e uma identidade indissociável da terra que o sustenta. Cascudo, entretanto, vai além e vê o sertanejo não só como um sobrevivente, mas como um criador, afinal o sertão é berço de uma cultura popular vibrante, repleta de lendas, músicas, danças e festas, que se constituem como formas de resistência simbólica.
Ao final, é nítido que o sertão de ambos, ao se oporem, não fazem mais do que confirmar a complexidade do Brasil, um campo de batalha que gera criação, muito embora a dureza das condições de vida que Euclides da Cunha descreve esteja longe de ser apaziguada pela cultura exposta por Câmara Cascudo. Ou seja, a celebração da cultura popular é, em muitos aspectos, uma forma de resistência às forças que, como Euclides viu e descreveu, esmagam as pessoas do sertão. Um sertão que é resistência física e cultural, uma dureza e uma vitalidade que sintetizam a luta pela sobrevivência e pela capacidade de resistir e se reinventar – um pilar da identidade nacional.