O sertão de Euclides da Cunha
Em sua obra Os Sertões, Euclides da Cunha não se limita a descrever o sertão apenas como um território árido e isolado. Vai bem além, propondo reflexão arrojada e profunda sobre o sertão como uma civilização que, apesar de sua aridez e isolamento, carrega estrutura própria, marcada por valores, crenças e cultura singularmente resiliente. O sertão não é, para o grandioso escritor, um submundo apenas de miséria e abandono, mas uma sociedade com dinâmicas próprias – desafios e virtudes, muitas vezes incompreendidas por quem olha de fora.
Trabalhos recentes sobre Euclides da Cunha, como os de André Botelho e Lília Schwarcz (escreverei sobre eles em outro texto), têm aprofundado a leitura do sertão em Os Sertões, apontando-o não apenas como um lugar geográfico, mas como uma civilização singular, cujos elementos fundamentais – como a religiosidade, a resistência, a solidariedade e a luta pela sobrevivência – definem e moldam um povo que, apesar de suas limitações materiais, é profundamente estruturado em suas práticas e valores.
No estilo peculiar e meticuloso do autor d’Os Sertões, o sertão aparece como uma região que carrega em si uma estrutura civilizacional que, embora baseada na luta diária pela sobrevivência, possui rica complexidade social. O sertanejo não é retratado como um ser isolado, entregue ao infortúnio das intempéries da natureza e, sim, como alguém imerso em uma sociedade solidária, com normas e organização próprias. A imagem do sertão e do sertanejo por ele construída é a de uma região e de um povo que resiste, sem jamais se submeter passivamente à força da natureza ou ao descaso do Estado.
Ao olhar o sertão como uma civilização, Euclides da Cunha convida o leitor a questionar a visão que lhe reduz a um deserto social e humano. Daí ele rejeitar a ideia do sertanejo passivo e submisso, entregando-nos a imagem de um povo que se ergue, apesar de tudo, contra todas as adversidades, como um sobrevivente e como um povo com suas próprias virtudes, valores e organização, tal como é mostrado na revolta de Canudos – a qual, mais do que uma revolta contra o governo central, é uma manifestação de resistência civilizatória, é o grito de um povo que, sem recursos, sem poder e sem voz no sistema político tenta se afirmar num Brasil que, segundo o autor, não compreende sua realidade. O homem do sertão não é o estereótipo de um analfabeto isolado, mas um ser vivente e cioso de sua vida, de sua condição, de sua história e de sua identidade e cuja luta é tanto pela terra quanto pela dignidade.
Na visão do militar, jornalista e escritor, a secura do sertão (clima árido e solo infértil) é uma adversidade geográfica e, também, uma metáfora para as condições de vida de seu povo, o qual, mesmo diante das dificuldades, construiu uma sociedade com códigos próprios; o sertanejo é produto direto da terra que habita, porquanto a geografia do sertão ser determinante para moldar o caráter das pessoas, suas reações diante da vida e da morte. O seu instinto de sobrevivência, muito mais do que uma característica isolada, é o reflexo de um modo de vida, de um sistema civilizacional que se adapta ao extremo e à escassez.
A perspectiva euclidiana sobre o sertão e o sertanejo é de abandono, de uma realidade brutalmente desassistida, ainda que cheia de potencial. Por isso, ele traz à baila a ideia da exclusão do sertanejo do projeto nacional, sem deixar de reconhecer que o sertão representa uma das partes mais genuínas da identidade nacional; a maneira como o Brasil lida com essa região reflete as profundas contradições sociais que ainda marcavam o país até o início do século XX – e que marcam ainda hoje. Canudos teria sido, dessa forma, a reafirmação de uma identidade civilizatória que o Brasil urbano e industrializado tentava ignorar ou deslegitimar, uma visão elitista que, ao longo da história, via o interior do país como um território primitivo, inculto e incivilizado.