Ignorância patroneada

por Sérgio Trindade foi publicado em 18.ago.25

Escrevi sábado (16) um texto sobre o martírio do professor. E, como não podia deixar de ser, mencionei Paulo Freire – o nosso santo pedagógico, canonizado em bronze e bibliografia. Bastou. Vieram as críticas. Algumas, civilizadas. A maioria, desgraçadas. Como se eu tivesse chutado imagem de padroeira na procissão. Não ligo. Dou de ombros. Porque, no Brasil, até a ignorância é sagrada.

Citar Paulo Freire, no Brasil, virou uma espécie de religião sem Bíblia. Quem pronuncia o nome não precisa ter lido uma linha escrita por ele. Basta entoar Paulo Freire como quem acende vela em cemitério.

Lembro de uma cena hilária ocorrida no IFRN – campus Santa Cruz há mais de uma década. Um professor da área tecnológica, inflamado pelo ambiente freireano que tomava e toma conta dos espaços ifernianos resolveu citar o educador no seu discurso de paraninfo de turmas concluintes. No dia seguinte, na sala dos professores, a algazarra foi digna de carnaval fora de época. Risadas, piadas, indignações. E eu, cínico, decidi fazer uma experiência: perguntar quem, afinal, já tinha lido Paulo Freire. Dos doze que interroguei – engenheiros, cientistas da natureza e sociais – apenas um tinha tocado na obra do homem. Um! Os demais, nada. Quase todos era ignorantes no assunto, fiéis que nunca abriram o evangelho. Professavam o credo sem conhecer o profeta. Paulo Freire, nesse ambiente, virou mito de orelhada. É citado como quem cita Camões sem nunca ter lido um soneto do vate português. É um santo de slide, com nome repetido como senha para entrar no clube do pensamento crítico, da consciência crítica. E quase ninguém se dá ao trabalho de abrir um livro seu.

Paulo Freire, meus três ou quatro leitores, é patrono da educação que gera ignorância.

Sim, sejamos justos, Paulo Freire criou um método engenhoso de alfabetizar adultos. Sim, o método rendeu manchetes, aplausos e convites para congressos internacionais. E sim, em 2012, o Congresso Nacional decidiu: ele é o Patrono da Educação Brasileira. Parece piada de salão, mas é lei da República. Um país em que milhões de jovens não conseguem ler uma bula de remédio ou escrever um bilhete de cinco linhas, mas cujo sistema educacional carrega, altaneiro e orgulhoso, o brasão de Paulo Freire. É o mesmo que coroar o Titanic patrono da navegação mundial.

Paulo Freire pregava que “Ler a palavra é ler o mundo”, que “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”, que “Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”. As frases viraram bordões, tatuagens acadêmicas, bilhetes premiados para dar acesso ao nirvana educacional e estão pregadas nas paredes de escolas brasileiras, de norte a sul. A realidade, porém, é pornográfica, pois nossos alunos não leem a palavra, não leem o mundo e, muitas vezes, não leem nem a placa do banheiro. O Pisa esfrega isso em nossas caras. Está sempre ali para lembrar que o que fazemos nas nossas escolas é uma porcaria.

Qualquer um que não reze pela cartilha descolada nasce com chifres e rabo. É incapaz de debater porque sua natureza é má, demoníaca, hereditária. Já os presumidos virtuosos – ah, esses são anjos! Se fecha os ouvidos, se vira sectário, não é porque seja perverso. É apenas uma alma que se afastou, por descuido, da sua bondade intrínseca. O não-socialista erra por maldade; o esquerdista, por distração. E aí vem a farsa: a roupagem da imparcialidade. Sim, porque para esse pessoal, Paulo Freire é crítico, também, da esquerda, muito embora qualquer bom leitor enxergue logo o truque: a crítica é transparente, um biombo, uma encenação. A parcialidade está escancarada.

Não peço aqui a crucificação de Paulo Freire, sem dúvida um estudioso profícuo. Apenas um pouco de honestidade. Um pouco de pudor. Que se assuma a ideologia sem o disfarce, afinal chega a ser chocante o desfile de “santos” que ele reverencia: Lenin, Fidel, Mao, Che Guevara. Todos apresentados como revolucionários abertos, democráticos, quase equivalentes a Cristo. Cristo de barbas, Cristo de farda, Cristo com sangue nas mãos. Eis o milagre segundo Paulo Freire: transformar carrascos em apóstolos. Por isso, digo: Paulo Freire não é só pedagogo, é também poeta de tiranos. Em seus livros, descreveu Che Guevara como humilde e capaz de amar o povo. Em Pedagogia do Oprimido, Che Guevara é apresentado como modelo de humildade e capacidade de amar em comunhão dialógica com o povo, numa “linguagem às vezes quase evangélica”. E o arremate? “A revolução é biófila, é criadora de vida, ainda que, para criá-la, seja obrigada a deter vidas que proíbem a vida”. É como se, para patrono da educação nacional, o guerrilheiro fosse um seminarista tímido e não um fuzilador em série.

Mas não é somente de Che Guevara que Paulo Freire tem uma visão terna e cativante. De Fidel Castro, o patrono da educação brasílica disse que possuía uma empatia quase mágica com as massas. Como se empatia fosse compatível com paredões. E Mao Tsé-Tung? Esse, Freire admirava por “superar a dicotomia entre trabalho manual e intelectual”. Mao, meus três ou quatro leitores, é aquele que matou milhões para criar a nova China.

Não é difícil demais entender que a paixão de Paulo Freire por Lenin, Mao, Che Guevara, Fidel e companhia. Estão todos tomados pelo mesmo vírus, pela mesma psicopatia dourada, pela mesma doença dos que acreditam no paraíso futuro e, por isso mesmo, autorizam o inferno no presente. Em nome da utopia, canonizam a barbárie. O amanhã é o álibi. O sangue é apenas o pedágio para ingresso no paraíso igualitarista.

Enquanto Paulo Freire abençoava com retórica, o Brasil continuava a fabricar analfabetos funcionais. Milhões que conseguem juntar sílabas, mas não entendem o que leem. É o estudante que copia a pergunta sem dar resposta. É o trabalhador que assina o contrato sem notar que está vendendo a alma. É o eleitor que lê um slogan e pensa que é verdade.

E os professores? São vítimas e cúmplices. Muitos tiveram formação trôpega e, por isso, formam mal. O ciclo se repete: o professor que não sabe tabuada ensina o aluno que não sabe interpretar um texto. É uma engrenagem de burrice. Uma fábrica de ignorância.

Imagem feita com auxílio de IA

Enquanto isso, Paulo Freire é lembrado em congressos solenes, citado em teses e idolatrado em cartazes. Seus discípulos falam em “educação libertadora” e “consciência crítica”. Bonito, poético, inútil. A escola brasileira não liberta ninguém. Pelo contrário: condena à mediocridade. Produz jovens que saem com diploma na mão e vazio na cabeça. Os discípulos de Freire dizem que a escola brasileira não é conduzida pela pedagogia freireana. Ou seja, os devotos de Freire não sabem Freire

O Brasil é uma caricatura. Transformou educação em encenação. O aluno finge aprender. O professor finge ensinar. O Estado finge investir. É a pedagogia do faz de conta. O resultado é uma tragédia nacional.

Temos um patrono reverenciado como gênio, mas uma escola que não sabe somar frações. Temos frases de efeito em bronze, mas estudantes que não entendem sequer o bronze da frase. Paulo Freire virou ídolo. A educação brasileira virou piada, pois a escola não alfabetiza, embriaga. E Paulo Freire é um dos garçons. O chefe deles, por sinal.

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