Benjamin Abrahão: entre a fé e o punhal, entre santos e cangaceiros

por Sérgio Trindade foi publicado em 18.set.25

Estava assistindo pela enésima vez ao filme Baile Perfumado, o qual aborda a vida de Benjamin Abrahão, homem de confiança de Padre Cícero, quando recorri ao livro Benjamin Abrahão: entre Padre Cícero e Lampião, do craque Frederico Pernambucano de Mello, para me aprofundar mais no assunto. Já lera a obra, mas sempre vale à pena retornar aos livros do autor pernambucano.

Morto Padre Cícero, o jovem sírio partiu de Juazeiro do Norte, em meados da década de 1930, em busca de recursos para realizar um velho sonho: filmar Lampião e seu bando, recorrendo a pessoas influentes, incluindo fazendeiros, comerciantes e políticos, para realizar o intento.

Há figuras que a história parece empurrar para as margens, como se o destino fosse condená-las ao esquecimento. Mas, de quando em quando, alguém retorna a essas sombras e as restitui ao convívio da memória. Foi o que fez Frederico Pernambucano de Mello com Benjamin Abrahão: entre Padre Cícero e Lampião. O livro é ao mesmo tempo documento e interpretação, reportagem e ensaio, história e crônica de costumes. Lê-se como quem atravessa um sertão não só físico, mas também cultural e moral, feito de silêncios, de imagens, de ambiguidades.

O livro vem quase como um rito de reparação, trazendo de volta o sírio que, fugindo ao alistamento militar na Primeira Guerra, desembarcou no Recife em 1915 e ali começou a tecer uma biografia improvável, que o levaria de secretário particular do santo do Juazeiro, Padre Cícero Romão Batista, a fotógrafo e cinegrafista do rei do cangaço, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião.

Imagem feita com auxílio de IA

Quem se aventurar pelas páginas verá que o trabalho não é apenas uma biografia, mas um estudo de fronteiras. A primeira, geográfica, mostra um jovem de 15 anos, originário da Síria convulsionada pela guerra, chegando ao Recife com uma mala modesta e acolhido por parentes cristãos. A segunda, social, descreve o mascate e pequeno comerciante e o secretário de um dos homens mais poderosos do Nordeste. A terceira, cultural, conclui que Benjamin Abrahão não era brasileiro, mas tampouco estrangeiro em sentido estrito; naturalizou-se sertanejo.

Ao seguir os passos do sírio, o autor reconstitui o Recife dos anos 1910, porto efervescente, espaço de mercadores, de sonhos e de tensões e, também, de Juazeiro do Norte nos anos 1920, cidade moldada por uma devoção quase medieval em torno de Padre Cícero. Nesse mundo, Abrahão percebeu cedo o valor das imagens: registrava procissões, retratava romeiros, organizava a correspondência do padre. Tornou-se, como mostra Frederico Pernambucano, figura próxima ao centro de poder da urbe situada no Cariri cearense, e a partir daí cruzou com alguns dos episódios centrais do Brasil republicano: a Coluna Prestes, as movimentações políticas do semiárido, a chegada do Estado Novo.

O título do livro já sugere a geografia moral que Benjamin Abrahão atravessou: de um lado, Padre Cícero, místico, beato, homem de fé; de outro, Lampião, bandoleiro, chefe guerreiro, símbolo de violência. Entre eles, o sírio.

Há nisso um traço revelador do Nordeste: o convívio de santos e cangaceiros, de rezas e bacamartes, de milagres e degolas. O próprio Benjamin Abrahão parece ter pressentido essa convivência. Primeiro, ao servir a Padre Cícero, mergulha na religiosidade popular: romarias, promessas, etc. Depois, ao registrar Lampião, revela o outro lado: o espetáculo da força, a teatralidade da violência, a construção de um mito que a fotografia ajudaria a cristalizar. É um trânsito não casual. Com a morte de Padre Cícero em 1934, o já maduro sírio buscava um novo lugar social e descobre que poderia ser o intérprete visual de um outro mito, o de Lampião. A câmera seria sua arma, sua forma de inscrição na história.

A obra tem o mérito de não se contentar com o relato textual: exibe fotografias raras, muitas delas feitas pelo próprio biografado. Aquelas imagens, algumas posadas, outras improvisadas, mostravam um Lampião que ria, que dançava, que posava em grupo com Maria Bonita, que se deixava registrar em trajes de couro ricamente ornados.

Não é apenas o rei do cangaço quem aparece; é o sertão inteiro que se deixa fotografar. Cada imagem carrega detalhes que são pistas: a arma reluzente, a expressão de uma companheira de bando, a ornamentação das roupas, os olhares duros ou jocosos. E o sírio, sertanejizado, parecia entender que sua câmera não captava apenas bandidos – captava uma cultura.

Frederico Pernambucano de Mello, historiador de formação e cronista por temperamento, realça esse ponto: as fotografias não são simples testemunhos, mas construções visuais. Lampião compreendia o efeito da pose. Benjamin Abrahão compreendia a força do registro. O resultado é um jogo de espelhos: o bandoleiro encenando sua imagem, o fotógrafo consolidando-a, a posteridade consumindo-a como verdade.

Se a vida do sírio foi marcada por mobilidade, sua morte foi marcada por brutalidade. Em 1938, em Águas Belas (hoje Itaíba), foi assassinado com 42 facadas. A violência do crime e a ausência de explicação convincente só ampliaram o halo de mistério em torno dele. O livro descreve como a polícia recolheu sua caderneta de campo, fonte de anotações preciosas, muitas delas em árabe, outras em português, alternadas como se o próprio autor jogasse com os véus da confidência. E aqui o leitor sente o peso do trágico: o homem que documentou santos e cangaceiros terminou vítima da mesma violência que buscava registrar.

Frederico Pernambucano de Mello é nome incontornável na bibliografia do cangaço. Recifense, formado em história e direito, membro de institutos históricos e da Academia Pernambucana de Letras, ele dedicou décadas a obras como Guerreiros do Sol e Estrelas de Couro. Seu método mistura rigor documental e narrativa viva: sabe valorizar tanto a estatística quanto a anedota, tanto o arquivo quanto a oralidade. Exatamente por isso, o autor recorreu a entrevistas com antigos cangaceiros, como Candeeiro e Dadá, a periódicos da época, a manuscritos e a depoimentos colhidos ao longo de quarenta anos. É pesquisa paciente, acumulada, que só ganha sentido quando costurada numa narrativa.

O estilo de Frederico Pernambucano e a própria natureza do livro permitem uma leitura dupla. De um lado, há a reportagem: o registro dos fatos, a cronologia, as descrições objetivas. De outro, há a sociologia cultural: o modo como um imigrante se integra ao sertão, como o mito do cangaço é fabricado, como a religiosidade se articula com a violência. É duplo olhar que aproxima o livro de Gilberto Freyre. Não por coincidência: há no texto o gosto pelo detalhe do cotidiano, pela cor local, pelo cheiro do sertão. Ao falar das romarias a Juazeiro do Norte, Frederico Pernambucano quase nos faz sentir o pó da estrada, o suor dos romeiros, o cheiro de vela queimada. Ao descrever Lampião em traje de couro, faz pensar na estética, no gosto, na moda sertaneja, um vestuário de combate, mas também um traje de representação.

Benjamin Abrahão emerge, então, não como herói nem como vilão, mas como personagem de fronteira. Estrangeiro, mas íntimo do sertão. Religioso, mas também mundano. Comerciante, mas também artista. Escravo da violência, mas também seu documentador. E sua vida, lida à luz da obra de Frederico Pernambucano de Mello, mostra como o Nordeste dos anos 1920 e 1930 era um espaço de trânsito, de contatos inesperados, de violência política e de religiosidade intensa. Padre Cícero e Lampião: polos opostos? Talvez não tanto. Ambos eram líderes carismáticos, ambos dependiam de símbolos, ambos se moviam no território da fé popular. Benjamin Abrahão apenas transitou de um para o outro, e nesse trânsito revelou as conexões invisíveis do sertão.

Não é exagero chamar este livro (e os outros citados neste texto) de clássico; trata-se de uma referência obrigatória para compreender o cangaço, mas também para entender como se constrói a memória no Brasil. A fotografia de Benjamin Abrahão é parte constitutiva do imaginário nacional. Sem ela, Lampião talvez não fosse Lampião, Padre Cícero talvez fosse menos mítico. Ao mesmo tempo, a biografia nos lembra que a memória é feita por personagens secundários, aqueles que registram, anotam, fotografam. O sírio, que parecia destinado ao anonimato, tornou-se o cronista visual de dois dos maiores mitos nordestinos. Foi ao mesmo tempo espectador e ator, estrangeiro e sertanejo, vítima e cronista. Sua vida, costurada por Frederico Pernambucano de Mello, é metáfora do próprio Nordeste – região de contrastes, de fronteiras, de violências, mas também de invenção, de estética, de mito. O sertão não é apenas espaço de banditismo e de santidade, mas de mediações sutis, de convivência entre extremos. O sírio que fugiu da guerra terminou por registrar a guerra íntima de um país em formação.

Ao abrir o livro, ao ver as imagens, ao ler as páginas, o leitor percebe: não se trata apenas de história de um homem, mas da fotografia de uma época. E de um Brasil inteiro.

posts relacionados
Logo do blog 'a história em detalhes'
por Sérgio Trindade
logo da agencia web escolar