De estrela a espetinho e guisado: o sumiço do bode-artista em Mossoró
Caro amigo Luiz Alves de Melo, meus cumprimentos.
Escrevo para contar uma história engraçadíssima sobre a nação mossoroense, sempre irrequieta e surpreendente, a qual me foi contado por um mossoroense de quatro costados.
Meu caro, há cidades que entram para a história pela bravura de seus filhos; outras, pela santidade de seus padroeiros; e algumas, mais ousadas, pela audácia de seus rompantes, pelo heroísmo e irreverência de sua gente. É o caso de Mossoró, conhecida pela resistência a Lampião, pela devoção a Santa Luzia e por uma invejável tradição de prefeitos que falam grosso e andam de paletó no sol do semiárido, mas que também guarda em seus arquivos não oficiais – aqueles que se transmitem de boca em boca, entre um gole de cerveja ou refrigerante e outro de aguardente – episódios pitorescos, como aquele que quase destruiu o casamento entre a cidade e a arte milenar do circo.
O protagonista desse enredo é ninguém menos que Marcos Frota, galã de novelas, trapezista honorário e, acima de tudo, dono de circo. Sim, o ator não se contentou em beijar mocinhas na televisão. Decidiu também beijar o picadeiro, e fundou um empreendimento que misturava tradição circense com certo verniz moderno. O projeto era tão grandioso que prometia levar emoção até a plateias pouco habituadas a surpresas além da conta de luz.
Pois foi com esse espírito messianicamente empreendedor que Frota desembarcou em Mossoró, decidido a erguer sua lona mágica no Largo do Jumbo, onde hoje se ergue o Ginásio Pedro Ciarlini. À época, a região tinha um charme peculiar: de um lado, o espaço amplo para espetáculos; do outro, o lendário Alto do Louvor, zona do meretrício, onde a economia local girava com a eficiência. Quem quisesse ir ao circo e, de lambuja, experimentar um pós-show mais picante, encontrava ali o pacote completo.
Tudo corria bem, até que o destino – ou melhor, a malandragem – resolveu intervir. Entre as atrações do circo, havia um bode. Não era um bode qualquer: tratava-se do astro ruminante, capaz de arrancar gargalhadas das crianças e aplausos dos adultos. Diz-se que o animal fazia piruetas, abanava a cabeça ao ritmo do sanfoneiro e tinha um olhar tão penetrante que lembrava certos vereadores em busca de voto.
Eis que, numa madrugada de lua gorda, os papudinhos – fregueses assíduos dos cabarés vizinhos – decidiram que bode de circo, assim solto, era patrimônio cultural à disposição do povo. O animal foi surrupiado entre risadas, tropeços e talvez um ou outro aceno das moças do Alto do Louvor, que assistiram à cena como quem presencia um ato de libertação: “Vai, meu filho, foge da vida dura de artista!”.
O que aconteceu depois é matéria de controvérsia. Há quem diga que o bode virou mascote dos cabarés, alimentado a rapadura e cachaça. Outros juram que foi oferecido em sacrifício eleitoral. Mas a versão mais cruel – e, portanto, a mais plausível – garante que os papudinhos, com a fome que a cachaça costuma abrir, transformaram o bode-artista em tira-gosto. Entre uma seresta e outra, o astro do picadeiro teria sido degustado em espetinhos ou guisados improvisados, acompanhado de farofa, bebidas e de risadas que ecoaram madrugada adentro.

Imagem feita com auxilio de IA
Quando, na manhã seguinte, Marcos Frota percebeu o sumiço, a lona quase veio abaixo. Sem o bode, metade do espetáculo estava comprometida. Afinal, malabaristas e trapezistas qualquer cidade tem; mas bode performático, só mesmo Mossoró poderia roubar e depois engolir. A versão oficial dá conta de que Frota, transtornado, reuniu a trupe e anunciou, em tom dramático: “Nunca mais trarei meu circo a esta terra ingrata!”. O ator, acostumado aos roteiros de novela, não resistiu à tentação de encenar a própria indignação.
E a verdade é que cumpriu a promessa. Diz-se que, ao longo dos anos, Mossoró recebeu artistas de todo tipo: repentistas, violeiros, grupos de teatro, até cantores sertanejos que rimam “coração” com “paixão. Jamais voltou, porém, a ver a lona de Marcos Frota. O bode roubado e devorado se tornou, assim, o herói involuntário de uma história de ruptura cultural, um episódio que mostra a extraordinária capacidade mossoroense de produzir mitologias próprias. Enquanto cidades maiores se vangloriam de arranha-céus ou estádios de futebol, Mossoró exibe com orgulho suas narrativas: a guerra contra Lampião, a abolição antecipada da escravidão e, claro, o bode de Marcos Frota. É um tripé histórico que nenhum livro escolar ousaria reunir, mas que faz todo o sentido no imaginário local.
E se hoje, no lugar do Largo do Jumbo, ergue-se o Ginásio Pedro Ciarlini, palco de jogos, discursos e comícios, cabe perguntar: não seria ele assombrado pela memória daquele bode desaparecido? Quem garante que, em noites de lua cheia, não ecoam pelas arquibancadas os balidos fantasmagóricos do ruminante, exigindo seu lugar no picadeiro perdido?
Marcos Frota, ao amaldiçoar Mossoró com sua ausência, talvez tenha cometido um erro estratégico. Porque, convenhamos, uma cidade que resistiu a Lampião não ia se dobrar a um galã de televisão. Aqui, bode roubado não é tragédia: é anedota. E anedota, em Mossoró, tem mais prestígio que novela.
No fundo, o que resta é a lição: o circo de Frota pretendia unir tradição e modernidade, mas acabou descobrindo a força da irreverente tradição mossoroense. Se o Brasil oficial exalta heróis de espada e capa, Mossoró também faz o mesmo, com um tempero: também celebra ladrões de bode, meretrizes solidárias e papudinhos de coragem duvidosa. Não é pouco. E aqui a história se fecha em círculo – ou melhor, em picadeiro. E fica para os estudiosos do futuro decidir se Marcos Frota foi vítima de um crime comum, de uma peça do destino ou de uma elaborada performance cultural da cidade. De qualquer forma, uma coisa é certa: em Mossoró, até bode roubado vira folclore.
Por Astério de Natuba