Panela, o lateral da eternidade

por Sérgio Trindade foi publicado em 08.out.25

Soube por volta das 12:30 de hoje, 8 de outubro de 2025, da partida definitiva de mais um amigo, carregado pela Moça Caetana – essa senhora que não tem pressa nem piedade.

Sebastião Bezerra de Barros Júnior – o nosso Panela – partiu, e com ele foi-se um pedaço antigo de mim (e creio de vários de seus amigos), aquele que ainda acreditava que as amizades de infância são eternas, como árvores que crescem sem pedir licença e se enraízam na alma da gente.

Conheci Panela na Escola Estadual Floriano Cavalcanti, em Mirassol, no ano da graça de 1979, quando fizemos a 5ª série – ou, como se diz agora, o 6º ano do ensino fundamental.

De lá para cá, percorremos quatro décadas e meia de amizade.

Panela foi lateral-direito do Internacional, e nunca um ser humano demonstrou com tamanha devoção o princípio da mediocridade. Era ruim de bola, mas ruim com arte, com método, com brilho. Cada passe errado era uma espécie de manifesto estético contra a lógica. E disso ríamos sempre, como se o passado ainda fosse uma mesa de bar esperando por nós.

A adolescência e o início da idade adulta nos juntaram em farras que pareciam não ter fim. Eram noites longas, cheias de promessas, em que a juventude parecia uma doença incuravelmente irresponsável.

Em Barra de Maxaranguape, nas semanas santas e carnavais, e em Florânia, nas vaquejadas e nos carnavais, Panela era o mesmo: recusava-se a tomar banho para não “perder tempo de bar”. Tinha, para explicar o desleixo que nos divertia e nos levava à loucura, uma filosofia particular: o suor era o perfume da alegria. E, por mais absurdo que pudesse parecer, havia graça e poesia nisso.

Lembrei de Panela quando vi a série sobre Bussunda, o “Besserman imundo”, apelido que colou no futuro humorista, o qual era “alérgico” a sabão. Panela era nosso Bussunda, um santo desleixado, defensor da pureza do desarranjo.

Participamos juntos – eu, ele, Max Bezerra, Eduardo Valentim, os irmãos Henrique e Sérgio Freitas, Jaílson (Dadá), Marcos Adriano, Carlinhos e tantos outros – de uma Natal dos anos 1980, pacata e quase bucólica, mas que guardava sua dose de desvario.

A cidade parecia feita para o riso fácil e as grandes besteiras: comícios nas Praias do Meio e dos Artistas, no Largo da Urbana, na área externa do Castelão/Machadão; dias ensolarados na Barraca do Lobão (batizada por nós), em Ponta Negra; noitadas nos clubes Assen e América. Tudo movido a álcool, loló e uma fé desmedida na eternidade dos dias, das noites e das madrugadas. O tempo do movimento de rotação da Terra era pouco para tudo o que fazíamos, de bom e de ruim.

Bons tempos. Bons de um modo que hoje seria considerado pecado capital.

O francês Michel de Montaigne dizia que “a morte não está nem à frente, nem atrás de nós; ela nos acompanha como sombra”. A sombra nos rondava, mesmo quando ríamos, bêbados e impunes; dela fazíamos pouco caso. Panela, com seu bom humor, nunca olhava para a morte, porque era homem de viver a vida. Talvez até desconfiasse que o riso é a única vingança possível contra o fim. Viveu rindo. De tudo. Até dele mesmo.

Sou materialista, confesso. Mas toda convicção filosófica claudica diante de um caixão amigo. Desconfio de Epicuro, para quem não devemos temer a morte, pois “quando ela está presente, nós não estamos”. O filósofo grego foi sábio, dizem. Não teve, porém, um amigo como Panela.

Há mortes que parecem criadas só para desmentir a filosofia.

E é nesses momentos que o descrente fraqueja, que o materialista sonha, e até o mais ácido de nós se permite esperar reencontrar (perdoem-me pela formulação) o outro, nem que seja num sonho, numa lembrança ou num lampejo de saudade. Testo: fecho os olhos e vejo Panela rindo. Rindo da própria partida, como se a morte fosse apenas outra mesa de confraternização, a última rodada de uma vida que nunca quis fechar a conta. Quando abro os olhos, vem o silêncio, aquele que Sêneca chamava de “a única certeza que acompanha o homem desde o berço”. E aí as lágrimas, discretas, não pedem licença, vêm, como quem pede desculpas por existir e por rolar pelos sulcos da minha face envelhecida.

Não haverá futuro com Panela, é verdade. Mas há o passado – e ele é tão vasto que ainda o mantém vivo, confirmando a expressão de Santo Agostinho, a saber, a de que “a memória é o presente das coisas passadas”.

Imagem feita com auxílio de IA

Pois bem: Panela vive aqui, nas dobras da lembrança, no campo do Internacional, errando passes gloriosos, e nas ruas de Florânia e de Natal, rindo da vida, zombando da ordem das coisas. A Moça Caetana o levou, é verdade. Mas não o levou inteiro, pois ficou conosco o riso, o cheiro de suor e de loló, o deboche, a bondade sem cálculo. Ficou o retrato de um tempo em que a amizade era uma religião de boteco – e o mundo parecia caber entre um copo de cerveja e uma gargalhada.

E assim sigo, entre a saudade e o consolo, lembrando do amigo que fez da vida a alegria de uma vocação. E se houver outro mundo, espero que ele tenha uma mesa larga e cadeira cativa para Panela e que lá não falte, jamais, uma cerveja eternamente gelada. Porque, no fundo, só seria justo que a sisuda Moça Caetana o tivesse levado para continuar a festa noutro plano.

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