A condição humana entre o balde de comida e o chicote do poder

por Sérgio Trindade foi publicado em 23.nov.25

Há imagens que se alojam na nossa cabeça como inquilinos teimosos. A de Orson Scott Card, aquela dos porcos que votariam eternamente no sujeito com o balde de comida, ainda que ele passasse as tardes no açougue ao lado abatendo sua freguesia, é uma dessas metáforas que não largam do pensamento. A frase tem o humor cínico de quem olhou a política por dentro e descobriu que, no fundo, o eleitor muitas vezes escolhe o candidato como o porco escolhe o tratador: não pela moral do sujeito, mas pelo tamanho do balde. E, vamos e venhamos, sempre há alguém disposto a carregar baldes generosos, desde que a porta do abatedouro permaneça discretamente entreaberta.

Se Card oferece o aforismo, Orwell entrega o laboratório. A Revolução dos Bichos é aquele livro que deveria vir com um aviso: Contém níveis perigosos de realidade. Ali, os porcos tocaiam o poder como velhos profissionais do ramo; começam libertadores, viram gestores e terminam déspotas. A transformação não é abrupta; é culinária. Vai-se cozinhando a massa em fogo baixo, temperando com promessas, mexendo com slogans e, quando ela percebe, já está servida no prato principal da história. Talvez porque o autoritarismo, antes de ser um sistema de governo, seja um método de cozinha. E dos mais eficientes.

Se o século XX deixou alguma lição, foi que o autoritarismo não se impõe apenas na base da botina ou do tanque, mas pela manipulação dos sentidos. Hitler e Stalin, Mussolini e Mao aprenderam cedo que o segredo não está só em dominar as instituições, mas em dominar a imaginação. E isso não se faz com tratados filosóficos, mas com histórias bem contadas.

Goebbels, chefe de propaganda nazista, tinha algo de chef de cozinha emocional. Ele simplificava os ingredientes até restar um único sabor – o do inimigo. Repetia o cardápio até o paladar se acostumar e servia tudo com uma apresentação impecável. Orwell o colocou como o porco Garganta, aquele que reescreve anúncios, altera memórias e ajusta a verdade como quem ajeita um quadro torto na parede.

O nazifascismo e o stalinismo não sobreviveram porque eram sistemas ideológicos coerentes, mas porque foram grandes narrativas performativas, com personagens, vilões, hinos, bandeiras e, sobretudo, uma sensação reconfortante de pertencimento. Assim como os bichos da granja, exaustos de trabalho e saturados de medo, os cidadãos reais buscavam no líder um pai com voz grossa que soubesse onde guardar o chicote, e não um administrador.

O cavalo Boxer é o símbolo universal dessa devoção bovina: trabalhador até a anemia, fiel até a cegueira. Sua tragédia é a de quem confunde virtude com obediência. Ele repete o mantra “Eu trabalharei mais” enquanto é consumido pelo próprio esforço. E quando finalmente desaba, é despachado para o abate como quem manda um eletrodoméstico velho para a assistência técnica. A narrativa que Garganta conta, de que ele morreu dignamente no hospital, é o primeiro obituário da mentira política moderna.

Por que alguém aceita o balde de comida sabendo do abate? A resposta pode estar menos na política e mais em regiões nebulosas da psicologia social. Ora, os hábitos e os gestos cotidianos moldaram sociedades inteiras. O Experimento de Milgram, aquele em que pessoas aplicavam choques em vítimas inocentes por simples obediência à autoridade, é um desses momentos científicos que nos fazem ter saudades dos porcos de Card. Eles, ao menos, nunca apertaram botões achando que estavam fazendo ciência. O estudo mostrou que há, em cada um de nós, um pequeno burocrata do mal, pronto para seguir ordens desde que alguém com jaleco ou farda diga que é seguro. Hannah Arendt foi, em Eichmann em Jerusalém, precisa no diagnóstico. A Espiral do Silêncio, formulada por Noelle-Neumann, acrescenta outro tempero indigesto: o medo de ficar sozinho faz as pessoas engolirem convicções como quem toma remédio amargo. Quando acham que são minoria, calam-se. Quando se calam, parecem minoria. Quando parecem minoria, de fato se tornam minoria. É o milagre da autoprofecia, sem intervenção divina.

O autoritarismo moderno entendeu cedo que isso é ouro. Quanto maior o temor de isolamento, maior a adesão automática ao discurso dominante. Os porcos da granja de Orwell não se calam apenas por medo do chicote; calam-se por medo de serem o próximo exemplo do que acontece com quem fala demais.

Até aqui, o autoritarismo se ocupava de editar a informação. Hoje ele descobriu uma estratégia ainda mais elegante: inundá-la.

Entramos na era digital como quem entra em uma feira livre em dia de promoção; há tantas vozes, tantos gritos, tantas ofertas, que o difícil não é acreditar numa mentira, mas encontrar tempo para checar todas. O balde de comida virou um feed personalizado; o inimigo do povo virou trending topic; o recinto do abate virou uma sala de servidores em algum lugar da Califórnia.

As redes sociais, com suas câmaras de eco, tornaram-se as novas cocheiras ideológicas. Ali, cada grupo é alimentado com o farelo emocional que melhor lhe convém: indignação, ressentimento, nostalgia ou medo. Os algoritmos aprenderam a reconhecer nossas fraquezas com a delicadeza de quem acaricia um gato para saber onde ele gosta de coçar. E, uma vez descoberto o ponto exato, entregam doses diárias de conteúdo que confirmam, reforçam e blindam os nossos preconceitos.

Se o antigo Garganta manipulava a verdade para toda a granja, o novo trabalha por encomenda, com precisão de cirurgião plástico. Cada cidadão recebe sua versão do inimigo, sua explicação do caos e seu retrato personalizado do líder. O político populista contemporâneo não distribui ideologia, distribui sentido de pertencimento, embalado em frases de efeito e vídeos curtos. Ele é menos Napoleão o porco e mais influenciador digital com chicote.

O risco maior não é acreditar em mentiras, mas passar a desconfiar da própria ideia de verdade. O novo autoritarismo não precisa convencer ninguém de que é virtuoso; basta fazer o cidadão-eleitor acreditar que todo o resto é corrupto, vendido ou conspirador. Assim, o deserto epistemológico se instala: pessoas que creem em tudo convivem com pessoas que não creem em nada – e ambas acabam manejadas pelo mesmo pastor.

A maior perversidade do autoritarismo é que ele não se apresenta como autoritarismo. É sempre o “remédio amargo”, a “ordem necessária”, o “sacrifício pelo bem comum”. Como observou certa vez Sérgio Buarque, as sociedades latino-americanas desenvolveram uma tolerância quase ritual à tutela – uma espécie de saudade do senhorio benevolente, do chefe protetor, do pai severo. A liberdade, essa senhora exigente, pede mais trabalho do que muitos estão dispostos a dar.

E isso explica por que a fábula de Orwell é tão desconfortável: ela revela que o ciclo da opressão não começa no palácio, mas na granja. Há sempre um porco disposto a cuidar do balde e sempre muitos animais dispostos a aceitar a comida sem perguntar de onde ela veio. A revolução que derruba o chicote geralmente termina com um chicote novo, talvez mais macio, mais perfumado, mas ainda assim um chicote.

Toda vez que a população delega ao líder o direito de decidir por ela, está assinando, sem notar, um contrato de servidão voluntária. E, como todo contrato bem redigido, a letra miúda costuma ser mortal. Boxers continuam sendo abatidos, Gargantas continuam reescrevendo histórias e Napoleões continuam brindando com uísque na sala de jantar.

O homem médio de hoje parece ser uma criatura profundamente inclinada à preguiça cognitiva. Pensar cansa, analisar dá trabalho, discordar exige coragem. Ele prefere o conforto de uma explicação simples, mesmo que seja falsa, ao desgaste de encarar uma verdade complexa. É por isso que o “homem do balde” sempre volta, e sempre vence.

Há um antídoto. Ele se chama vigilância crítica. Não aquela paranoia que vê conspirações em cada esquina, mas a capacidade de manter a espinha ereta diante do discurso sedutor. É preciso desconfiar do líder que oferece certezas rápidas, do político que promete proteção absoluta e do algoritmo que diz conhecer seus desejos mais profundos, pois, meus três ou quatro leitores, a liberdade não é dada, ela é construída. E, como toda construção, precisa ser mantida e revisada. Do contrário, o recinto ao lado, silencioso e funcional, acaba reaparecendo como destino de quem acreditou demais, trabalhou demais ou confiou demais.

Imagem feita com auxílio de IA

A alegoria de Card e a sátira de Orwell convergem numa lição amarga: a fragilidade humana diante do poder não mudou muito nos últimos séculos. Mudaram os aparatos, as tecnologias, os slogans, mas o mecanismo essencial – alimentar para controlar, amedrontar para manter – permanece assombrosamente o mesmo. Por isso, o desafio contemporâneo talvez seja maior, pois temos informação demais, líderes demais, discursos demais, certezas demais. Vivemos entre baldes transbordantes e recintos de abate invisíveis. E, se não quisermos acabar como os bichos da granja, é preciso cultivar o difícil hábito de pensar por conta própria. Afinal o problema não é apenas que existem homens com baldes e chicotes. O problema é que, às vezes, nós mesmos seguramos o balde, misturamos a ração e seguimos cantando, satisfeitos, enquanto alguém fecha lentamente a porta do recinto ao lado.

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