O pecado capital e a imaculada concepção da sombra
Ontem (12/12), o Presidente Lula e o ministro Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes se encontraram no evento de lançamento do canal SBT News, em São Paulo. Na oportunidade, Moraes agradeceu a Lula por ter envidado esforços que o nome dele fosse retirado da lista de sancionados pela Lei Magnitsky. Na oportunidade, ocorreu um incidente digno de nota e vai pr’além do encontro entre pesos pesados da atual vida pública brasileira.
Há cenas que duram segundos e, no entanto, carregam décadas de significado. Um gesto aparentemente banal – um fotógrafo pedindo que câmeras parem de registrar uma conversa presidencial – pode parecer, à primeira vista, apenas zelo profissional, etiqueta de bastidores ou excesso de cuidado com a liturgia do cargo. Contudo, a política, como a boa crônica, vive desses detalhes mínimos que denunciam os grandes hábitos.
Quando, em pleno evento público, transmitido ao vivo, no lançamento de um canal de notícias, o fotógrafo oficial do Presidente da República pede que as câmeras cessem a filmagem enquanto o chefe de Estado conversa com um ministro do STF, algo mais profundo se anuncia. Não é o clique que incomoda, mas o olhar.

Imagem feita com auxílio de IA
A democracia não se constrói apenas com urnas, discursos e solenidades. Ela se sustenta, sobretudo, na convivência incômoda entre o poder e a vigilância. A imprensa, nesse arranjo imperfeito, não é convidada elegante de salão, mas parente inconveniente que aparece sem avisar, observa demais e faz perguntas fora de hora. Quando alguém, ainda que sem autoridade formal, sente-se no direito de afastá-la do registro de um ato público, o problema deixa de ser protocolar e passa a ser simbólico. É o símbolo do poder que se incomoda com a luz.
Não se trata de insinuar conspirações ou atribuir ao fotógrafo um papel maior do que o seu. O ponto não é a pessoa, mas o gesto e o ambiente que o torna possível. Em democracias maduras, ninguém precisa mandar calar câmeras. O silêncio, quando ocorre, é exceção justificável, jamais regra implícita. Quando a exceção começa a se apresentar como reflexo automático, algo se deslocou no eixo da normalidade institucional. O poder passa a agir como se a transparência fosse concessão, não obrigação.
A América Latina conhece bem esse caminho. Ele nunca começa com tanques nas ruas ou jornais fechados de um dia para o outro. Começa com pequenos recuos, como uma câmera desligada aqui (vejam o que ocorreu na Câmara Federal quando o deputado psolista Glauber Braga ocupou a mesa diretora e de lá foi posto para fora, corretamente, pela Polícia Legislativa, a qual, vale ressaltar, deveria ter agido da mesma forma quando bolsonaristas fizeram o mesmo tempos atrás; no momento em que Glauber foi conduzido, o sinal da TV Câmara sumiu. Voltarei a este assunto), um repórter afastado ali, uma pergunta considerada inconveniente em nome da governabilidade. Na Argentina, jornalistas críticos ao poder já foram hostilizados não por censores oficiais, mas por assessorias zelosas que aprenderam a tratar a informação como propriedade privada do governo. No México, o discurso reiterado de desqualificação da imprensa criou um ambiente em que o ataque não precisa ser institucional para ser eficaz, bastando o sinal verde simbólico do topo. Na Venezuela, antes do silêncio imposto, houve a pedagogia do constrangimento. Primeiro vieram os pedidos “cordiais” para não filmar, depois as restrições administrativas e, por fim, o fechamento explícito. Em regimes que ainda mantêm eleições e parlamentos, como na Nicarágua, o cerco à imprensa foi sendo naturalizado como defesa da ordem, da soberania ou da estabilidade. Sempre há uma justificativa nobre para limitar o incômodo. A liberdade de imprensa raramente morre assassinada; costuma falecer de asfixia progressiva.
O fenômeno não é exclusivo do continente. Na Hungria, país formalmente democrático e membro da União Europeia, o controle da narrativa se deu pela ocupação gradual dos espaços de mediação, pela intimidação indireta e pelo privilégio aos veículos amigáveis. Na Turquia, jornalistas não foram silenciados apenas por leis duras, mas por uma cultura de medo disseminada, em que o poder aprende a dispensar ordens explícitas. Todos sabem até onde podem ir e, quase sempre, param antes.
O Brasil, com sua tradição de imprensa barulhenta e desconfiada, sempre resistiu melhor a esse tipo de acomodação silenciosa. Mas não está vacinado. O episódio do pedido para cessar a filmagem não é um golpe contra a liberdade de imprensa. É algo mais traiçoeiro e perigoso, pois é um ensaio de normalização, o qual sugere que há momentos em que o poder pode escolher quando será observado. Ora, se o presidente e um ministro do Supremo conversam em público, num evento transmitido ao vivo, o interesse público não é intruso, é protagonista.
A liturgia republicana não se protege com sombras. Ao contrário, fortalece-se sob luz intensa. A proximidade excessiva entre poder político e poder judicial, quando se dá longe do escrutínio público, sempre desperta desconfiança, não porque seja necessariamente ilegítima, mas porque a democracia exige probidade e, também, aparência de probidade. É a velha máxima da honestidade da mulher de César, a qual não deve ser e parecer honesta. Pedir que as câmeras se afastem é admitir, ainda que involuntariamente, que há algo que não deve ser visto. E quando o poder começa a decidir o que pode ou não ser visto, a imprensa deixa de ser mediadora para se tornar figurante.
O problema não está no fotógrafo, mas no silêncio que ele simboliza. Um silêncio que não grita, não ameaça, não prende, apenas pede licença para se instalar. E, uma vez instalado, passa a agir como se sempre tivesse estado ali. É assim que democracias se desgastam, não por rupturas espetaculares, mas por pequenos gestos de contenção que, somados, redesenham os limites do aceitável.
Como disse Millôr Fernandes, imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados. Por isso, meus três ou quatro leitores, a liberdade de imprensa não precisa de aplausos do poder. Precisa de espaço, distância e desconfiança saudável. Toda vez que alguém pede para desligar a câmera em nome da conveniência, é bom lembrar que o que sustenta a democracia não é o que acontece longe dos olhos, mas aquilo que suporta ser visto sem constrangimento. Quando o poder se incomoda com o registro, o problema, sejamos claros, não é a lente, mas o reflexo.