O positivismo gaúcho e Getúlio Vargas
Nos últimos três meses usei grande parte do meu tempo lendo livros sobre Getúlio Dornelles Vargas e/ou sobre personalidades políticas que conviveram, como aliados ou adversários, com ele.
Desci das estantes a trilogia sobre Vargas, de Lira Neto; O pai dos pobres: o Brasil e a Era Vargas, de Robert Levigne; Fui secretário de Getúlio Vargas, de Luiz Vergara; Getúlio Vargas, meu pai, de Alzira Vargas do Amaral Peixoto; Getúlio Vargas: a revolução inacabada, de Luthero Vargas e comprei alguns (a trilogia sobre Vargas, de José Augusto Ribeiro; Getúlio Vargas: o poder e o sorriso, de Boris Fausto) que tratam do líder gaúcho e li outros que não tratam dele mas lançam luz sobre o personagem (Carlos Lacerda: a vida de um lutador, de John F. Dulles; Chatô, o rei do Brasil, de Fernando Morais), além de trabalhos que abordam a nossa história, dos primeiros anos da República até a primeira metade da década de 1950, e que são cruciais para entender muito do mundo no qual ele nasceu e cresceu.
Confirmei uma suspeita: nos livros de História do Brasil do ensino médio e nas aulas que tive de História do Brasil na universidade, Getúlio Dornelles Vargas é apresentado como fascista ou simpatizante do fascismo, sem maiores explicações. Pouca ou nenhuma atenção é dada aos anos iniciais de sua formação política e como eles moldaram a sua personalidade política.
O primeiro volume da trilogia de Lira Neto sobre Getúlio Vargas começa descrevendo uma manobra de exibição da aviação italiana, no dia 15 de janeiro de 1931, nos céus do Rio de Janeiro. O leme dos 11 aviões da esquadrilha estavam pintados com as três cores oficiais da Itália (verde, branco e vermelho) e nos flutuadores de pouso, “o fascio, o feixe de varas dourado acompanhado da machadinha, símbolo da justiça na Roma Antiga, reincorporado como insígnia pelos fascistas.” A multidão de aproximadamente 10 mil pessoas, aglomerada na praia do Flamengo, prorrompeu dando vivas ao Brasil, à Itália, a Getúlio Vargas e a Mussolini. Os que não puderam ir assistir ao espetáculo acompanharam o ruído dos possantes motores Fiat de 1120 cavalos dos aviões pelos alto-falantes postos na fachada do edifício Hasenclever, na avenida Rio Branco, sede dos Diários Associados e da sucursal da Hearst Corporation, conglomerado de comunicação do norte-americano Willian Randolph Hearst (ver o filme Cidadão Kane), simpatizante do fascismo. (https://www.bbc.com/portuguese/cultura/020809_citizenkanebg.shtml)
O Vargas pós-Revolução de 1930 é fruto de uma longa caminhada iniciada no início do século XX, no Rio Grande do Sul de Júlio de Castilhos, de Pinheiro Machado e de Borges de Medeiros, os dois últimos herdeiros políticos do primeiro.
O Rio Grande do Sul foi, do início ao fim do século XIX, palco de extensos conflitos externos e internos, com correntes políticas defendendo a sua autonomia e se revoltando com o descaso do poder central, a tal ponto que em nenhuma outra província do Império eram tão nítidas as diferenças entre o Partido Liberal e o Partido Conservador, com este defendendo o fortalecimento do poder central no Rio de Janeiro e aquele empunhando a bandeira da descentralização e do federalismo. Os liberais, ressalte-se, tinham a simpatia dos estancieiros gaúchos.
A partir da década de 1880, o movimento republicano traz um ingrediente novo para temperar a ainda saborosa briga entre conservadores e liberais: o positivismo, doutrina filosófica criada por Augusto Comte, pensador francês que viveu em meados do século XIX.
Dentro de uma lógica evolutiva e teleológica, Comte dizia que a humanidade teria passado por três estados: teológico, metafísico e positivo, caracterizando-se este último pela aplicação do rigor científico às análises da sociedade e da política.
O positivismo comteano propunha, por meio de legislação protetora, a incorporação do proletariado à sociedade, combate sem trégua ao liberalismo e à democracia e elitismo político.
O Exército foi o espaço onde melhor deitou suas raízes as ideias do filósofo francês. Mas não o único, pois as elites civis do Rio Grande do Sul também foram muito influenciadas por elas, destacando-se, entre todos, a figura de Júlio de Castilhos, secundado por Borges de Medeiros e toda a sua prole política – Getúlio Vargas, João Neves da Fontoura, Paim Filho, Londolfo Collor, etc –, reunida no movimento revolucionário de 1930 (Oswaldo Aranha, o arquiteto da revolução não nasce politicamente no ninho borgiano, mas no de Assis Brasil, adversário de Borges).
Filho de estancieiro, Júlio de Castilhos foi, apesar de seus limitados dotes físicos e dos escassos recursos oratórios, o mais influente líder político do Rio Grande do Sul na última década do século XIX e nos primeiros anos do século XX (morreu cedo, em 1903) e estabeleceu as diretrizes políticas do estado e até do país, afinal um seu herdeiro, Borges de Medeiros, mandou no estado por duas décadas e meia e foi o mentor do homem público que mais tempo sentou na cadeira presidencial do país.
O positivismo gaúcho, de matriz castilhista, não foi aquele construído por Comte, mas uma versão pragmática e instrumentalmente adaptada à realidade do Brasil e, principalmente, do Rio Grande do Sul, com um poder executivo forte e dotado de extensos poderes (ditadura republicana), com uma câmara de representantes que era apenas uma órgão de assessoramento encarregado de votar os tributos e o orçamento, e liberdade de expressão restrita ou praticamente inexistente. Tudo para garantir a supremacia oligárquica dos estancieiros e a permanência perpétua do Partido Republicano Riograndense (PRR) à frente dos destinos do estado.
Na seara econômica, o positivismo castilhista defendia a intervenção econômica do Estado e condicionada ao interesse social, que deveria prevalecer sempre que houvesse conflito com os interesses individuais.
Getúlio Vargas foi, junto com Tancredo Neves, o mais pragmático líder político que o Brasil já teve, moldando-se às conjunturas, quando e se necessário, mas sem abandonar, em momento algum, a essência daquilo que lhe forjou nos anos iniciais de sua formação no Rio Grande do Sul, como já dissemos pouco ou nada valorizados quando se estuda sobre ele em escolas e mesmo em universidades. Por isso é possível identificar, com certa precisão, com diz Boris Fausto, alguns paradoxos de sua personalidade política, a saber, a de combatente sem trégua do regionalismo e da autonomia dos estados, em nome da centralização do poder, sem ter deixado, em momento algum, de ser um gaúcho ou o simpatizante do fascismo que se associou aos Aliados, Estados Unidos e Inglaterra à frente, para derrotar as potência dos Eixo.
No Vargas pós-Revolução de 1930, apesar do contexto que o engolfa, os ecos de Augusto Comte e de Júlio de Castilhos são mais audíveis do que os Mussolini e de Hitler.