A farsa histórica
Para aqueles que viveram e lutaram contra o regime autoritário instaurado em 1964 – como também para quem estudou a sério o que foi aquilo –, o momento atual traz uma sensação de déjà-vu extremamente desconfortável.
O recente escândalo envolvendo as conversas entre o juiz auxiliar e assessores do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF) e então Presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), além de outros episódios que se somam a este, evoca o fantasma do passado.
Termos como atentados à democracia e atos antidemocráticos têm ressurgido no debate, acompanhados de ações e palavras que visam proteger a segurança das autoridades, especialmente do poder judiciário. Chega-se ao ponto de considerar uma “ilicitude grave” criticar as instituições, sujeitando aqueles que o fazem a sanções legais.
Curiosamente, criticar o ditador venezuelano Nicolás Maduro parece não gerar problemas, diferente do que aconteceu com o deputado federal Francisco Pinto, do MDB baiano, que teve seu mandato cassado por dizer verdades sobre o ditador do Chile, Augusto Pinochet, em meados dos anos 1970, quando ainda estava vigente o Ato Institucional nº 5 (AI-5).
A sensação de assombro voltou quando soube que houve uma espécie de “pente fino” nas mensagens do X (antigo Twitter) em busca de críticas ácidas e criminosas contra autoridades da República. Imediatamente lembrei-me do célebre discurso do deputado federal Márcio Moreira Alves, durante o pinga fogo (expediente do plenário da Câmara de Deputados para comunicações de até 5 minutos), que sugeriu boicote das moças aos jovens oficiais das forças armadas, recusando convites para dançar nos bailes.
Esse discurso, ainda que um tanto inocente, foi o pretexto para o regime dos generais endurecer seu caráter repressivo com a edição do AI-5, ponto de partida para os tempos mais sombrios de repressão, não sem antes vasculharem os mínimos detalhes da suposta subversão – como fazem hoje ao rastrear críticas às autoridades nas redes sociais. Um exemplo foi a cassação do deputado federal mineiro Marcos Tito, do MDB, por ter lido um editorial do jornal clandestino Voz Operária, do Partido Comunista Brasileiro, que criticava o regime.
Tudo isso alimenta uma polarização sufocante e prejudicial no país; nada escapa à divisão política, nem mesmo o futebol, dos um dos pilares de nossa identidade.
Embora o Congresso já tenha revogado a Lei de Segurança Nacional do regime de 1964, parece que seu espírito continua a assombrar os brasileiros, com a mesma criatividade de outrora para identificar a subversão na fala e nas expressões cotidianas, mesmo que a presumida subversão revele apenas o descontentamento de uma parcela da sociedade, intoxicada com a ação de gente alçada ao olimpo dos salvadores da pátria.