A patrulha ideológica-literária
Tudo corre, na modernidade, num tempo cada vez mais “curto”, com as pessoas se recusando a gastá-lo em reflexões mais elaboradas. É um tempo em que ler livros é tempo perdido. Em que se informar sobre o mundo é inútil. Ser humanista, então, é o cúmulo da idiotice, motivo para ser tripudiado e, no limite, odiado, principalmente se o humanismo leva o sujeito a se contrapor a consensos artificial e falsamente estabelecidos.
Antes de seguir, afianço, é só uma reflexão. Nada tem de pessoal no que escrevo.
Postei sexta-feira (06/01) em minhas redes sociais que recebera o volume 1 da biografia de Lula, escrita por Fernando Morais, e que usaria o final de semana para degustá-la, afinal é um livro sobre personalidade política importante de nosso país e escrita por um de nossos melhores biógrafos.
Foi o suficiente para uma avalanche desabar sobre minha cabeça. Alguns amigos (outros só conhecidos) eleitores de Lula (lulistas ou não) e antilulistas pensaram: o professor se rendeu e vai votar no ex-presidente. Lembrei de uma passagem de Voltaire: “Não é aos homens que me dirijo, é a ti, Deus de todos os seres, de todos os homens e de todos os tempos. Que as pequenas diferenças entre as vestimentas que cobrem nossos fracos corpos, entre nossos costumes ridículos, entre todas as nossas leis imperfeitas, entre todas as nossas opiniões insensatas, que todas essas pequenas nuances que distinguem os átomos chamados homens não sejam motivos de perseguição.”
Poucos dos meus amigos (e conhecidos) pararam para refletir: “O cara é professor de história, logo faz parte do ofício dele ler.” E ler sobre o que for possível, pois só assim terá cabedal de informações suficientes para discorrer sobre os assuntos a serem tratados em sala de aula.
Na segunda metade dos anos 1970, o cineasta Cacá Diegues criou o termo patrulha ideológica, nascido para designar um grupo informal de pessoas unido por laços ideológicos e que tem como objetivo, por meio de discursos e protestos e mesmo de alguma forma de repressão, preservar e perpetuar o pensamento de uma porção politicamente engajada da sociedade e para impor, seja lá por que meios, a visão de mundo dele.
Ilustração / Linkendin
No debate público brasileiro, quase todos os grupos política e ideologicamente engajados são useiros e vezeiros na arte de atacar o mensageiro e não a ideia, desqualificando o interlocutor por juízo negativo de suas intenções, com o objetivo de desviar a discussão e desacreditar, a priori, as ideias por ele expostas. Tal postura, comum à maioria dos grupos que se confrontam, desde sempre, empobrece a livre circulação de ideias e, portanto, o debate, porque ele fica muito personalizado e perde-se numa espécie de fulanização redutora.
O patrulhamento ideológico é, em essência, redutor e leva à ignorância, pois precisa dobrar o oponente a suas concepções sem apontar as falhas e limitações das ideias que pretende combater, mantendo-se assim confortável na mediocridade. A coisa chegou a tal ponto nos dias de hoje, que estão sendo patrulhados até aqueles que querem apenas exercer o direito de não se manifestarem.
Não sou daqueles que querem o exercer o direito de não se manifestar. Nunca fui de silenciar e exponho, sem receio algum, minhas posições, mesmo que sejam polêmicas e deturpadas por gente mal-intencionada. É o risco de quem entra no jogo. Um amigo a quem muito respeito veio certa vez me questionar: “Você deveria criticar abertamente o governo Bolsonaro, dizer que não presta, etc, etc e etc”. Entendo a posição de meu amigo, mas não faço, na minha vida privada, aquilo que me mandam fazer.
Já escrevi coisas contra e a favor do governo Bolsonaro. Assim também fiz nos dois governos de Fernando Henrique, de Lula e de Dilma. Se reconhecer erro, faço a crítica; não reconhecendo, calo-me. Da mesma forma, reconhecendo méritos, elogio; não reconhecendo, calo-me.
Já escrevi contra e a favor da mídia, de governos, de políticos, etc.
Considero-me uma pessoa bem-informada. Leio jornais, revistas e sites, da direita à esquerda. Livros, então, nunca os separei e os refutei por motivos ideológicos. Sou verdadeiramente fissurado por literatura e por biografias, porque ler sempre foi, ensinou-me meu pai, o grande antídoto contra a ignorância que assola, desde tempos imemoriais, o nosso país. Ler tudo, sem reservas e sem filtros.
As biografias trazem detalhes que não compõem a estrutura dos clássicos de história. E como professor de história, tenho verdadeira paixão pelos acontecimentos de bastidores. Quem entrar na minha biblioteca encontrará um acervo de uns cinco mil volumes, entre os quais pelo menos 5% são biografias, todas devidamente lidas: lá estão os três grandes da revolução soviética (Lênin, Trotsky e Stálin), Hitler, Mussolini, Churchill, Roosevelt, Bismarck, D. Pedro I e D. Pedro II, Napoleão Bonaparte, Carlos Magno, Júlio César, Cleópatra, Alexandre Magno, Getúlio Vargas, JK, Castello Branco, Padre Cícero, Tancredo Neves, Juarez Távora, Pedro Velho, Dinarte Mariz, José Augusto, Jesus Cristo, Maomé, Buda, entre outros. Alguns com mais de uma biografia na prateleira.
O fato de não ser eleitor de Lula, como todos estão cansados de me ouvir dizer e escrever, não é obstáculo para que leia sobre ele, que, gostemos ou não, é indiscutivelmente uma das maiores lideranças políticas que o Brasil já teve, politicamente ativo por cinco décadas e, portanto, matéria a ser conhecida por qualquer cientista social e humano e por qualquer professor da área de humanidades. Mais: qualquer crítica bem fundamentada sobre Lula (ou qualquer personagem histórico) precisa estar lastreada no maior volume de literatura possível. Sem isso, a crítica é só amuo, arrufo sem consistência alguma. Vale a máxima de Sun Tzé: “O segredo da vitória está em conhecer a si mesmo e a seu inimigo.” (grifo meu).
O pessoal das tchumas se agasta e se aborrece com o que falo e escrevo porque não tem paciência e apetite para enfrentar 300, 400 ou mais páginas de livros. Ou só leem aquilo que é tolerado para sua religião laica. Estes saberão sobre o que falam na bolha que frequente. Algumas pobres almas carregam verdadeiros tratados sob o braço, que dali sairão para a prateleira da biblioteca, mantendo o cheirinho híbrido de suvaco, poeira e mofo. Outro tanto é incapaz de entender o texto lido e vivem de arrotar o que os outros dizem sobre o que leram. E poucos, mas muito poucos mesmos, são capazes de varar dias e noites mantendo uma leitura plural.
Não se constrói sociedade plural amoitado sobre arsenal intelectual monolítico. A pluralidade deve ser antes de tudo de ideias.