Brasil faccioso
O humor, meus amigos, é um tapa na cara da lógica. É o homem tropeçando na própria gravata e, antes que caia, soltando uma gargalhada desesperada. Não há nada mais humano – ou mais canalha – do que o humor. Desde que o mundo é mundo, rimos do outro, rimos de nós mesmos, e, sobretudo, rimos da desgraça, que é a única coisa certa na vida.

Censura ao humor (imagem elaborada com auxílio de IA)
Aristóteles – aquele grego que, de sandálias, vivia filosofando – já dizia que o humor nasce da imperfeição. Ou seja, se fôssemos deuses, não riríamos. O riso só existe porque somos fracos, ridículos, patéticos. A comédia, segundo ele, é a imitação dos homens inferiores. Não inferiores de caráter, não! Inferiores de sorte, de aparência, de destino. Rimos, portanto, do azar, do tropeço, da calvície, do chifre alheio. Em O Nome da Rosa, Umberto Eco trata profundamente da questão do riso e de como ele foi perseguido na Idade Média, sobretudo em ambientes eclesiásticos. Na trama, a perseguição ao riso se materializa no ocultamento do segundo livro da Poética, dedicado justamente à comédia e ao riso e cuja existência fictícia é central para o enredo. Jorge de Burgos, o monge cego do romance, acredita que permitir o acesso a esse conhecimento dissolveria os fundamentos morais e espirituais da cristandade. Numa passagem emblemática, Jorge Burgos pontifica: “O riso é um vento diabólico que deforma as feições e faz os homens parecerem macacos. O riso mata o medo, e sem o medo não haverá mais fé. Quem não teme o Diabo já não precisa de Deus”.
Antes, os romanos, brutais e sensuais, perceberam que o humor serve também como arma. Cícero e Quintiliano recomendavam o gracejo como quem recomenda um punhal: “Faça rir e, enquanto o outro ri, enterre-lhe a lâmina no fígado”. O humor é sedução, mas também é humilhação. Quem faz rir, conquista. Quem ri, se desarma. Daí, oradores brilhantes frequentemente utilizarem do artifício em suas falas. A começar por Cícero, o senador romano, em In Verrem, uma série de discursos contra Caio Verres, ex-governador corrupto da Sicília. Num dos trechos, carregado de ironia, finge elogiar: “Oh, quão diligente governador! Quão incansável servidor do bem público! Pois nada deixou aos sicilianos, nem sequer o que lhes era de direito.”
Winston Churchill, numa das respostas mais sarcásticas dirigidas a um oponente, a deputada trabalhista Bessia Braddock (ou com a socialite Nancy Astor), que o chamara de bêbado, disse: “Eu estou bêbado e a senhora é feia. A diferença entre mim e você é que amanhã eu estarei sóbrio.”
Carlos Frederico Werneck de Lacerda, fenomenal jornalista e orador, excelente escrevendo e falando, pisoteou adversários sem dó e piedade. Sobre
1) Getúlio Vargas, de quem foi inimigo durante toda a vida: “O moço do Catete que nunca envelhece, mas também nunca amadurece.”
2) Juscelino Kubitschek: “Este é o governo Bossa Nova: muita pose, muita ginga… e nenhum compasso com a realidade.”
3) João Goulart, herdeiro político direto de Vargas: “João Goulart é um chefe de Estado… de estância!”
Thomas Hobbes, pessimista de marca maior, decretou: “Rimos porque nos sentimos superiores”. Eis aí a verdade mais cretina e mais sincera do humor: sempre há um vencido, um idiota ou algo parecido no centro da piada. E, quando não há, o vencido somos nós mesmos. Saber rir de si próprio é uma virtude. Kant, aquele alemão metódico que regulava até o horário da evacuação, dizia que o humor nasce da incongruência, ou seja, esperamos uma coisa, acontece outra, e então rimos. O riso é, então, uma máscara que colocamos para esconder o susto. Logo, o humor é feito de três ingredientes básicos: 1) a incongruência, esse desencontro entre a expectativa e o destino; sujeito se arruma todo, põe a melhor gravata, sai pra conquistar o mundo e escorrega na casca de banana; 2) o alívio, essa risada histérica que damos para não chorar; e 3) a superioridade, esse sentimento mesquinho, esse prazerzinho covarde de ver o outro se ferrar. Logo, o humor é uma espécie de confissão de fraqueza, pois só ri quem sabe que vai morrer e quem se desespera. Por isso, meus três ou quatro leitores, nunca confiem num sujeito que não tem senso de humor, porque ele já morreu e não sabe.
O humor, repito, é a nossa última e mais canalha dignidade. Ou era.
O Brasil se transformou num prostíbulo moral onde o riso é tratado como crime hediondo e, por isso, assiste com a fleuma dos canalhas satisfeitos à saga de Leo Lins, condenado “a oito anos e três meses de prisão por piadas preconceituosas feitas em um vídeo postado no canal dele no YouTube”.
O homem não matou, não roubou, não desviou verbas públicas para financiar mansões no lago Paranoá. Não! O homem fez piadas – e por isso, repito, piadas!, será jogado na masmorra como um facínora. Hipocrisia maior, impossível.
E que ninguém se iluda, Leo Lins não é o primeiro humorista a ser investigado por falas de caráter discriminatório. Antes dele, nos anos do regime autoritário de 1964, quando o Brasil fingia ser decente, humoristas enfrentaram repressão por sátiras políticas.
O glorioso Pasquim de Jaguar, Ziraldo, Tarso de Castro e outros sofreu prisões na década de 1970 e censura prévia por charges e textos subversivos. Chico Anysio, em 1977, teve sua peça censurada por linguagem imoral. Ah, o moralismo! Esse câncer da nossa história. Imoral! Como se a verdadeira imoralidade não fosse a burrice e a covardia institucionalizadas.
Com a redemocratização, trocaram-se os porretes e os fuzis pelas togas. Na democracia, processos substituíram os centros de tortura. O Casseta & Planeta que o diga, pois enfrentou 130 ações de PMs em 1997. E assim seguimos nesse teatrinho abjeto no qual intimidações sempre aconteceram com programas humorísticos e seus humoristas, com jornalistas e com aqueles que denunciam malfeitos.
Mas eis que, como nos piores pesadelos, as prisões voltaram e a vez é de Leo Lins, condenado a 8 anos de cadeia num punitivismo absurdo e excessivo, expressando um retrocesso especialmente criminalizando o humor. Para Luís Fernando Veríssimo, um craque na área, o humor é uma chave interpretativa da vida, que permite revelar contradições, absurdos e fragilidades humanas, muitas vezes de maneira mais eficaz do que o discurso sério ou solene. No Brasil, porém, o riso está algemado, o deboche metido na solitária, o espírito crítico trucidado por um Estado que se veste e age como celerado. O humor, disse Veríssimo, tem de ser “essencialmente libertário e o humorista não pode ser um fanático, pois o fanatismo não admite a dúvida e o humor é, acima de tudo, dúvida.”
Há quem, como sempre, aplauda a degola. Afinal, a responsabilização de humoristas por comentários preconceituosos tem sido cada vez mais frequentes. Os pretensamente bem-pensantes brandem com uma espada enferrujada o limite da liberdade de expressão. Como se fosse possível limitar o riso sem assassinar a própria alma nacional. São encarnações de Jorge de Burgos tropicais. Veja-se o caso de Danilo Gentili, “condenado a pagar uma indenização de R$ 41,8 mil ao sindicato dos enfermeiros, bem como a publicar um pedido de desculpas em suas redes sociais, após fazer uma ‘piada’ com a categoria de profissionais”. E o de Nego Di, “condenado por difamação e injúria contra a deputada estadual Luciana Genro (PSOL)”. A piada virou crime; o chiste, delito; o sarcasmo, pena privativa de liberdade.
O moralismo de ocasião triunfa, como sempre triunfa nesta terra de pecadores que se fazem de santos. Há quem diga que a prisão do Leo Lins, independente do teor de suas piadas, é uma clara afronta à liberdade de expressão. O humorista é sempre o inimigo público número um, porque denuncia o ridículo dos poderosos e a estupidez dos fanáticos, pois são vozes da resistência nas ditaduras, nos regimes autoritários e mesmo nas democracias relativas; seus algozes, anônimos na história, ficarão no esquecimento. O humor é, como registra Veríssimo, “um modo de suavizar a verdade sem mentir.”
O sistema jurídico brasileiro, como um Leviatã capenga, segue impávido: “A liberdade de expressão é plena desde que ela não interfira, afete ou gere consequências para a honra de quem quer que seja, independente da sua cor, orientação sexual e idade”, afirma o criminalista Antônio Gonçalves. Quanta generosidade, quanta magnanimidade… Desde que ninguém se sinta ofendido! Como se viver não fosse ofender e ser ofendido. E completa o advogado Henrique Cataldi: “A liberdade de expressão e a liberdade artística, embora protegidas constitucionalmente (…), não são absolutas. Quando uma fala, mesmo em contexto de espetáculo, excede os limites do razoável e atinge direitos fundamentais de terceiros, ela pode, sim, ser punida civil e penalmente”. Eis a palavra mágica, razoável. Mas quem decide o que é razoável? O juiz? O político? O militante ressentido?
A verdade é mais feia.
O problema é que as pessoas não dão valor a princípios. É tudo feito na base do emocional, da catarse, do prazer de combater o mal, mesmo que o custo seja astronômico. O que me ofende há de ser calado, punido e destruído; o que ofende o outro não é ofensa legítima. Somos uma sociedade de justiceiros histéricos, linchadores de sofá, caçadores de bruxas do Twitter, do Instagram… O que se quer não é justiça, é vingança.
E não se iludam: é irritante como as pessoas não conseguem abstrair um pouquinho e imaginar o político adversário no poder usando as ferramentas de censura que os progressistas defendem hoje. Hipocrisia é nosso traço genético. Bradamos agora por censura, amanhã choramos por liberdade.
Ah, sim, e a famosa lei antipiada? Quando Lula a sancionou, equiparando piada ao crime de racismo, muitos gritaram o que ia acontecer, mas outro tanto dizia que era mais uma fake news, nenhum humorista seria preso por isso, etc. Pois bem, já estão sendo, seguirão sendo. Eis o Brasil: aqui, a piada mata… ou melhor, prende!
E, como uma pedrada final, a sentença que define esta comédia trágica: Léo Lins é o único culpado por sua prisão. Se, em vez de fazer piada, estivesse segurando um fuzil e cantando sobre explodir cabeças da facção rival em alguma comunidade dominada pelo CV, enquanto lava centenas de milhões para a facção (como denunciam que sua amada faz), nada disso estaria acontecendo. A ironia é brutal, mas real. No país da impunidade seletiva, o humorista é o criminoso e o criminoso é uma vítima social. A continuar assim, o melhor caminho é se unir a bandidos.
Eis a síntese do desencanto: neste Brasil de todos os absurdos, o bandido é protegido, o humorista é punido, e a sociedade aplaude – cega, surda e moralmente falida.
A comédia virou tragédia, e todos nós, passivos e cúmplices, assistimos da plateia enquanto o palhaço é algemado e levado ao cadafalso.
Sabemos quem são os carrascos, não é?
Por Luiz Alves de Melo