O trono da exceção

por Sérgio Trindade foi publicado em 14.dez.25

A imprensa tradicional passou os últimos anos em transe voluntário, desses que, bastando a convicção moral, não precisam de hipnose nem de charlatão. De repente, todos acordamos numa realidade paralela em que o Supremo Tribunal Federal (STF) não era um tribunal, mas um ajuntamento de super-heróis, reunido não por concurso público, mas por iluminação divina.

Na versão em tecnicolor da democracia militante, Alexandre de Moraes virou, mesmo parecendo-se com Lex Luthor, um Superman togado, e cada um do seus colegas vestiu o figurino que lhe cabia, inserindo o topo do Judiciário numa epopeia. E, aí, o Direito pôs as vestes dos gibis e a Constituição virou um mero panfleto.

Agora, com o atraso habitual de quem só percebe o incêndio quando o telhado já caiu, a mesma imprensa começa a admitir, em tom de quem pede desculpas com a boca cheia, que o STF talvez tenha cometido excessos, pontuam de cara lambida. Excessos virtuosos, excessos do bem, excessos pedagógicos. Tudo em nome da boa causa suprema, a saber, o mal metafísico que, a julgar pelo noticiário, dispensa definição objetiva, mas que todos os virtuosos chamam de bolsonarismo.

Bem, feito o serviço sujo, eis que se pleiteia o retorno à normalidade. Fingem não saber – ou sabem e fingem – que o poder, uma vez solto, não se comporta como cachorro adestrado. Ora, meus três ou quatro leitores, Dilma Rousseff formulou sentença definitiva: “A pasta de dente não volta para dentro do dentifrício”. Nem com reza brava, completo.

Enquanto a mídia tradicional nada via de errado onde tudo de errado havia, não foram poucos os que, atuando nela ou fora dela, enxergaram – e seguem enxergando – as coisas como elas são e não como gostariam que fossem.

Se alguém da tchurma é flagrado com a boca na botija, reina um silêncio cúmplice, um silêncio seletivo, um silêncio que não é ausência de som, mas excesso de conveniência. Apontar esse silêncio exige que se diga, sem meias-palavras, que o Supremo desrespeita o regime democrático e cria no Brasil o crime político. Não o crime político clássico, aquele de ditaduras assumidas, mas sua versão pós-moderna, higienizada, justificada em nome da defesa da democracia contra ela mesma.

Imagem feita com auxílio de IA

Do ponto de vista filosófico, o espetáculo é antigo. Platão, o gênio grego aluno de Sócrates e professor de Aristóteles, já desconfiava dos guardiões que se acham acima da pólis; Montesquieu tremeria ao ver a separação de poderes transformada em amontoado; Carl Schmitt, membro do Partido Nazista (foi convidado pelo filósofo Martin Heidegger a integrar as hostes nazistas) e um dos mais controversos especialistas em direito constitucional do século passado, reconheceria, com um sorriso cínico, o soberano que decide sobre o estado de exceção permanente. Ora, meus caros três ou quatro leitores, o STF passou de intérprete da Constituição a seu autor informal, e isso não é detalhe técnico, mas mutação de regime. Na ciência política, chama-se isso de judicialização extrema do poder combinada com moralização da política, mistura explosiva, pois transforma divergência em pecado e oposição em delito.

O brasileiro tem vocação para a histeria cívica. Precisa de heróis, precisa de vilões, precisa de um Fla-Flu moral para chamar de seu e a imprensa embarcou nisso como beata em procissão, distribuindo indulgências a quem estivesse do lado d’uma senhora volúvel que muda de ideia sem pedir licença e a quem o vulgo chama de História.

Hoje, os mesmos que batiam palmas pelos excessos começam a pedir moderação, autocontenção, retorno à liturgia. Tarde demais. O poder que se acostuma a ser absoluto não aceita dieta, como bem o disse Lord Acton – “O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente”. E o jornalismo que troca o ceticismo pela militância perde a autoridade para reclamar quando o monstro que ajudou a criar resolve morder o criador.

Não nos agoniemos, pois no fim resta a ironia suprema de que, em nome de salvar a democracia, relativizou-se a lei, em nome de combater o autoritarismo, concentrou-se poder, em nome do bem, inventou-se o mal permitido. Socorro-me com Nelson Rodrigues, para quem a unanimidade é burra. Eu acrescentaria que pode ser, também, perigosa.

O Supremo virou unanimidade por um tempo, e o preço dessa paixão cega começa agora a chegar, com juros, correção monetária e silêncio constrangido.

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