Anacronismo identitário
A série Guerreiros do Sol, aposta grandiosa e reluzente do Globoplay para recontar a saga do cangaço sob a ótica do sertão pop, é um desses artefatos culturais que, de tão preocupados em dialogar com a sensibilidade do presente, acabam por insultar a inteligência do passado.
Arriado em casa por quase duas semanas, após uma cirurgia, assisti à obra escrita por George Moura e Sérgio Goldenberg e tive a nítida impressão de que o cangaço – fenômeno ocorrido no sertão nordestino entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX – foi invadido não pelas volantes dos tenentes Zé Rufino e João Bezerra e do sargento Aniceto Rodrigues, mas por um diretório acadêmico d’alguma universidade federal. A série, tecnicamente impecável e esteticamente belíssima, padece de um mal que vem acometendo a teledramaturgia moderna quando esta se arrisca no terreno pantanoso da história, a saber, a incapacidade crônica de aceitar que os nossos antepassados não rezavam pela cartilha dos departamentos de diversidade e inclusão presentes em muitas instituições dos dias atuais.
O que se vê na tela é um exercício de revisionismo que beira a alucinação sociológica., pois, a pretexto de fazer uma releitura do mito de Lampião e Maria Bonita, travestidos nos personagens Josué e Rosa, os autores criaram um sertão que nunca existiu, habitado por cangaceiros que, entre uma degola e outra, praticamente discutem a desconstrução da masculinidade tóxica. O problema central de Guerreiros do Sol não é a licença poética, ferramenta legítima da ficção, mas a licença política que transforma o sertão dos anos 1920-1930 num palco para as pautas identitárias contemporâneas, higienizando a brutalidade atávica daquele tempo para não ofender a moralidade da classe média urbana e todos os segmentos pretensamente progressistas de hoje.
O anacronismo grita, sobretudo, na representação feminina. A mulher do sertão da primeira metade do século XX, e especificamente a mulher inserida no contexto do cangaço, vivia sob um regime de submissão patriarcal tão denso que cortava a carne. Eram figuras de uma resiliência silenciosa, quase geológica, que sobreviviam nas frestas deixadas pelo patriarcalismo e machismo dos tempos dos coronéis e das oligarquias familiares que dominavam os estados. Na série, contudo, as personagens femininas desfilam mostrando um empoderamento que faria inveja a Simone de Beauvoir. Elas não apenas pegam em armas, o que Maria Bonita, Dadá, Sila e outras de fato fizeram, sempre sob a órbita de seus companheiros, mas articulam, lideram e discursam com uma consciência de gênero que só seria formulada décadas depois. Ao transformar essas mulheres em ícones do feminismo moderno, a produção comete o pecado de apagar a verdadeira tragédia de suas vidas, afinal a mulher do cangaço não era uma girlboss de alpercata e, sim, quase sempre, uma sobrevivente que trocava a tirania do pai ou do marido pela tirania do chefe do bando, numa vida de privações, fugas e obediência. Fingir que elas tinham voz ativa nas decisões estratégicas ou liberdade sexual plena é negar a história para vender uma fantasia de empoderamento.
Ainda mais inverossímil, beirando o delírio, é a inserção da militância gay e das dinâmicas homoafetivas abertas dentro de um bando de cangaceiros. É preciso ter muito desprezo pela sociologia do cabra-macho para imaginar que, no sertão profundo das primeiras três décadas do século passado, um ambiente regido pelo código de honra mais primitivo, pelo catolicismo popular punitivo e pela virilidade como moeda de sobrevivência, haveria espaço para a aceitação da homossexualidade como identidade social. Não se trata de negar a existência do desejo homoafetivo em qualquer época ou lugar, mas de compreender como ele era socialmente reprimido. Num grupo de foras-da-lei no qual a reputação de macheza era o único escudo contra a morte, um cangaceiro que desafiasse as normas de gênero não seria acolhido com compreensão; seria eliminado. A pauta gay, inserida na trama com a sutileza de um elefante numa loja de cristais, serve apenas para preencher a cota de representatividade exigida pelos tempos modernos, criando situações que soam falsas como uma nota de três reais. O espectador é convidado a acreditar que cangaceiros e jagunços, que matavam por um olhar torto, teriam a sensibilidade de compreender as nuances do amor entre pessoas do mesmo sexo, numa suspensão de descrença que nem o realismo mágico de Garcia Márquez ousaria exigir.

Imagem feita com auxílio de IA
Essa Guerreiros do Sol é uma espécie de vítima da Síndrome de Bridgerton aplicada à caatinga, vestindo o passado com roupas de época, mas injetando nele a alma do presente. O resultado é um produto esquizofrênico. De um lado, a fotografia belíssima, a poeira, o suor e o sangue cenográfico; de outro, diálogos e comportamentos que pertencem ao Leblon contemporâneo. Os cangaceiros da Globo são brutais, mas desconstruídos; matam, mas têm DRs sobre sentimentos; são bandidos, mas têm consciência social. Essa tentativa de salvar moralmente os protagonistas, tornando-os palatáveis ao público que consome séries de streaming, acaba por infantilizar a história do Brasil. O cangaço foi um fenômeno complexo de banditismo social, miséria, seca e vingança, não um movimento de vanguarda progressista. Lampião não era um Che Guevara do sertão, tampouco um aliado das causas minoritárias, mas um facínora pragmático, que costurava acordos com coronéis e aterrorizava pobres com a mesma facilidade.
Ao tentar transformar o bando em uma liga de heróis injustiçados e inclusivos, a série perde a oportunidade de explorar o verdadeiro drama humano daquele tempo, a saber, o conflito entre a tradição sufocante e o desejo de liberdade, vivido dentro das limitações reais da época. Guerreiros do Sol prefere o caminho fácil da lenda saneada, o que é uma pena, pois a história real, com suas mulheres subalternas que encontravam força na desgraça e seus homens presos na armadilha da própria violência, é infinitamente mais rica e trágica do que essa versão pasteurizada. No fim das contas, a série serve como um belo espetáculo visual; como documento de época ou análise social vale tanto quanto uma nota de rodapé escrita por um marqueteiro. O sertão ali retratado não é o de Graciliano Ramos ou de Euclides da Cunha, mas um sertão do algoritmo, desenhado para engajar, lacrar e, tristemente, esquecer quem fomos de verdade. A tal magia da televisão, neste caso, operou o milagre de fazer do cangaço um ambiente seguro para a militância deste primeiro quartel do século XX, provando que, na tela da Globo, o papel aceita tudo, até cangaceiro desconstruído.