Angico 1938 (3)

por Sérgio Trindade foi publicado em 25.jul.24

A tese da morte de Lampião por envenenamento é polêmica e, como a que abordamos no último texto (https://historianosdetalhes.com.br/cangaco/angico-1938-2/), carece de maior fundamentação e foi rebatida tenazmente tenente João Bezerra em Como dei cabo de Lampião e por nove entre dez estudiosos do cangaço (Frederico Pernambucano de Melo, Antônio Amaury Correa de Araújo, Billy Jaynes Chandler, Israel Maria dos Santos Segundo, Sérgio Augusto de Souza Dantas, entre outros).

Segundo os defensores da tese do envenenamento, Pedro de Cândido, coiteiro de extrema confiança de Lampião, teria levado até a grota de Angico, às margens do rio São Francisco, garrafas de bebida alcoólica, sem que as tampas tenham sido flagrantemente violadas, com veneno ou mesmo comida envenenada. Como o rei do cangaço confiava plenamente em Pedro, bebidas e alimentos não foram testados antes de serem consumidos.

Antes de a abordarmos, fiquemos com uma outra versão da tese do envenenamento.

Em entrevista concedida à revista Manchete, no início dos anos 1970, e citada em alguns trabalhos, o padre José Kehrle, confessor de Virgulino Ferreira, diz que o tenente João Bezerra, comandante das tropas que atacaram o bando, “era amigo de Lampião e que, muitas vezes, ia jogar com ele no seu esconderijo, em terras do pai do governador de Alagoas”. Aqui faço um adendo: Lampião foi amigo do interventor/governador de Sergipe, Eronildes de Carvalho, cujo pai, o coronel Antônio Ferreira de Carvalho (Antônio Caixeiro), era coiteiro do famoso bandoleiro.

Segue dizendo o padre que João Bezerra sabia da rotina do bando e que “todos os dias de manhã, uma mulher levava um pote de água de beber para os cangaceiros. Em troca de dez contos de réis, a mulher depois de muito vacilar, diluiu na água o veneno que o tenente lhe dera. João Bezerra cercou a casa, viu quando Maria Bonita levou o pote para dentro, e esperou mais um pouco. Entrou sozinho quando ouviu gritos: os cangaceiros e Lampião agonizavam envenenados. O tenente então deu um tiro na cabeça de Maria Bonita e os soldados invadiram a casa, roubaram o dinheiro dos cangaceiros e cortaram-lhes as cabeças”.

No relato do religioso, não há lugar para a grota Angico, onde Lampião e sei bando estavam homiziados, e sim para uma casa que ninguém sabe onde é.

O argumento central da tese do envenenamento ocorrido em Angico está lastreado, de acordo com o médico e autor do livro Lampião: a medicina e o cangaço (escrito em parceria com  Antônio Amaury Correa de Araújo), no depoimento dado por Wandenkolk Wanderley segundo o qual os urubus que se refestelaram com o banquete macabro morreram (https://lampiaoaceso.blogspot.com/2010/09/as-verdades-de-angico-por-leandro.html). O seu depoimento contradiz um outro que “dera mais de 30 anos antes e que, curiosamente, não apresentava a mortandade dessas aves”. Complementando o depoimento de Wanderley, “o escritor Joaquim Góis disse que, ao chegar em Angico, logo após o combate, avistou ‘muito urubu alegre naquele dia’.”

A tese do envenenamento serve para aumentar a aura de heroísmo de Lampião e para reforçar a tese de que a sua morte só poderia ocorrer por traição, imagem que teve e tem muitos construtores, entre os quais um dos mais famosos foi o padre Frederico Bezerra Maciel, o qual escreveu uma saga hagiográfica do famoso cangaceiro. Acerca do envenenamento de Lampião e de seu bando, diz Maciel: “Ao tempo em que a canoa, deixando Piranhas, deslizava naquela hora quente pós-meridiana, aproveitou Pedro Cândido para envenenar toda a comida, principalmente o café em pó, cujo amargor se confundiria com a mistura do arsênico e outras peçonhas [e] enviou Domingos com um recado pra João Bezerra, em Pedra, dizendo, por antecipação, que estava tudo pronto para a botada antes de Lampião sair de manhãzinha”.

O ponto principal no qual se agarram os defensores da tese é a da quase inexistente resistência dos cangaceiros naquele distante julho de 1938, nos sertões sergipanos. Sobre isso, diz o ex-cangaceiro Candeeiro, sobrevivente do bando, em depoimento prestado ao pesquisador Aderbal Nogueira, quando questionado sobre a possibilidade de Lampião ter morrido envenenado: “De jeito nenhum. Lá não tinha veneno, não, rapaz. Lhe juro como essa luz que nós tamo vendo”. Sobre a falta de reação de Lampião, encerra: “Deu não! Lampião tava do lado de cima. Amoroso deixou o fuzil, não pôde pegar. Aí cerrou o tiroteio pro lado de Lampião” (https://www.youtube.com/watch?v=9fLDdExvXww).

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